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abril

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Peripécias de calouros

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Alícia não desatara os nós que a prendiam ao velho colégio onde concluíra o curso científico

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Era o solene dia da primeira aula de Alícia na Faculdade de Medicina. Antes das nove horas da manhã, lá ela já se encontrava ao lado dos demais calouros. Anfiteatro lotado. Não apenas os novatos. Todos os alunos a postos e de ouvidos atentos afim de melhor captarem as palavras do diretor e dos professores.

Após a preleção os novatos foram guiados, pelos bedéis, para o anfiteatro de anatomia. Não apenas com a finalidade de conhecerem o local, mas também para se habituarem com o diferente odor e o ardente vapor do formol que invadia todo o ambiente. Inúmeras mesas de granito ocupavam todo o espaço. Por ora, nada sobre elas. Cada uma delas destinada para seis alunos. Com exceção de duas que seriam ocupadas por sete neófitos.

Alícia e mais quatro companheiras anteciparam-se a fim de tomar posse de uma situada logo na entrada. Logo delas se aproximou um sorridente colega que, de pronto, já as fez rir com suas jocosas palavras e mais outro que nada falava.

No saguão de entrada da faculdade encontravam-se editais indicando os horários das aulas e o número das salas onde seriam realizadas as aulas teóricas e práticas. Para os recém-chegados bastava saber os locais onde seriam realizadas as aulas da outra matéria, pois o de Anatomia Descritiva haviam acabado de conhecer. Faltava saber onde se localizava o laboratório da cadeira de Histologia.

Duas matérias apenas no primeiro ano do curso de medicina. Mas para os quais era necessário dedicarem-se em todas as horas dos seis dias úteis da semana.

O auditório em que eram realizadas as aulas teóricas de Anatomia Descritiva e de Histologia Geral era formado por degraus nos quais os alunos se sentavam.  Escadas em linha reta. Cadernos de anotações no colo.

Após as aulas teóricas, as práticas.

Para que os novos alunos bem entendessem o que o professor explicava, figuras um tanto esmaecidas de um grande livro de anatomia eram projetadas na parede frontal. Usava-se para isto um episcópio ¹.

Sala em penumbra. Como em salas de cinema. Voz um tanto já gutural do mestre a indicar com um grande apontador de madeira — sem luzes na ponta — os detalhes que explicava. Ouviam-se ruídos nada estranhos. Na semiobscuridade não era difícil entregar-se aos braços de Morfeu.

As lições de Anatomia —teóricas e práticas— iniciavam-se pelo sistema ósseo. Os do crânio foram os primeiros a serem apresentados. Primeiramente os com menos reentrâncias, protuberâncias e orifícios. Por último, um dos mais importantes, o esfenoidal. Importante por ser o suporte das partes nobres localizadas dentro de sua caixa óssea.

As aulas de Histologia Geral também eram administradas no mesmo auditório em que eram realizadas as de Anatomia Descritiva. 

Estava a turma empolgada, no anfiteatro de anatomia, a inspecionar os ossos temporais. De repente, o jocoso colega soltou mais uma das suas.

— Vejam, tão pequeninos. Devem ser ossos de beija-flor.

Tratavam-se do martelo, da bigorna e do estribo, os menores ossos do corpo humano e que são responsáveis por importantes funções auditivas. Depois de formado fez a residência em Otorrinolaringologia. Posteriormente, professor catedrático da cadeira.

Pelas células e tecidos ósseos iniciaram-se as aulas de histologia.

As de anatomia descritiva eram ministradas às segundas-feiras, quartas-feiras e sextas-feiras. As de Histologia, às terças-feiras, quintas-feiras e sábados.

Aulas teóricas, das oito às dez horas. Práticas, das dez horas ao meio-dia.

Nas tardes dos dias de aula de anatomia os mais interessados retornavam ao anfiteatro a fim de melhor inteirarem-se nos meandros do corpo. Alícia e suas colega lá se encontravam a estudar. Nas demais tardes dedicavam-se a estudar nos livros.

O Compêndio de Anatomia Humana, completamente ilustrado, em quatro grandes volumas, de autoria dos mestres franceses Jean Léo Testut e A. M. Latarjet era o objeto sagrado dos estudos. Para facilitar a vida e o bolso dos aprendizes foi editada uma apresentação concisa, de pequeno tamanho, sem ilustrações, de apenas um volume, com umas seiscentas páginas, conhecido como “Testuzinho”. Era ele o livro de cabeceira de Alícia e de suas colegas. Consultavam o grande apenas para conhecerem detalhes e acompanhar as minúcias lá desenhadas. O pequeno tomo era o ideal para a grande maioria.

O compêndio de Histologia não era tão exagerado. Matéria microscópica.

Os livros científicos que os estudantes necessitavam eram adquiridos em uma grande livraria localizada ao lado da Universidade. Já naqueles tempos era possível comprá-los em doze prestações mensais. E a livraria confiava nos estudantes sem lhes pedir avalistas. Bom… era fácil encontrá-los e apreender os volumes caso uma prestação não fosse quitada.

Além dos livros, era necessária a aquisição de alguns instrumentos a fim de serem realizadas as dissecções anatômicas. Ao findar a parte dedicada aos ossos entrariam no sistema muscular e então iniciar-se-iam as práticas em cadáveres humanos. Em uma loja especializada, Alícia e seus colegas adquiriram bisturis, tenta-cânulas, pinças lisas e denteadas, tesouras de pontas retas e de pontas curvas, luvas de látex e um pequeno estojo para guardá-los e transportá-los.

Nos poucos dias em que Alícia estivera em sua casa após o resultado do exame vestibular e da visita à casa de sua mana, sua mãe, exímia costureira, confeccionou quatro aventais brancos baseados em modelo emprestado por um médico que clinicava em sua cidade.

Não jalecos ou guarda-pós. Um avental. Branco. Os de manga comprimida, com punho sanfonado. Sem gola. Fechado atrás do pescoço e na parte de cima das costas com botões. Na parte anterior do tórax, pequenas pregas. E como se fora um avental, uma faixa em torno da cintura amarrada na parte posterior.

Em todos os dias das aulas de anatomia ela e seus colegas desfilavam pela rua principal da grande cidade com uma enorme parafernália embaixo dos braços. Além do “Testuzinho”, portavam o avental, o estojo com os instrumentos de dissecção anatômica, as luvas de látex e mais cadernos, caneta-tinteiro, vidro de tinta, lápis e borracha. As meninas ainda levavam no braço a sua indispensável bolsa.

Sobravam apenas as tardes de domingo para um lazer que poderia ser um cinema ou uma tarde dançante. Aos sábados as meninas do pensionato ainda precisavam lavar e passar suas roupas. De cama, banho e vestuário.

E Antônio? Onde andaria? Ao caminhar pelas ruas no ir e vir para e da faculdade ficava a olhar para todos os lados, sempre com a esperança de vê-lo. Nunca mais o vira desde o famigerado dia em que se negara continuar a ir com ele ao cinema, pois precisava estudar para o vestibular. Valeu a pena porque passou. Mas seu primeiro amor sumira nas esquinas da vida.

Alícia não desatara os nós que a prendiam ao velho colégio onde concluíra o curso científico. Em todo início do ano letivo era realizado um grande baile em um tradicional clube da periferia da grande cidade. Alícia convidou suas amigas do pensionato para irem lá se divertir. Sempre uma grande orquestra animava aquelas inesquecíveis noites. Algumas ex-colegas que residiam na cidade prontificaram-se a levar todas para pernoitarem em suas casas, pois o pensionato cerrava as portas, impreterivelmente, às dezoito horas.

Estava, alegre, a dançar e a conversar com um ex-colega de colégio. Mal percebeu que havia outra mão a afagar suas costas. E uma voz inconfundível a dizer ao seu par que era hora dele sentar-se e procurar outra garota. O amigo sorriu e lhe disse apenas:

— Missão cumprida, amigo.

Alícia e Antônio passaram o resto da noite a dançar juntinhos, de rosto colado, embalados pelos mais belos sambas-canções, foxes e boleros da década de 1950.


¹ Lanterna que projeta, sobre um quadro branco, imagens de suporte opaco ou de pequenos objetos com suas cores naturais.

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