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O que restou de um sonho*

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“Somos todos irlandeses. Deixem as armas e seremos todos livres”

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Uma sensação diferente acompanhou-os naquela manhã ao deixar a estalagem onde pernoitaram. Parecia-lhes que as angústias foram deixadas para trás e a paz voltara a morar em seus corações. Mesmo o forte nevoeiro matinal, que lhes embotara a visão — fazendo com que o brioso corcel andasse mais vagarosamente—, não conseguiu obnubilar seus pensamentos.

Eufóricos, ao entardecer, já avistavam a cidade de seu destino, a tão sonhada Dublin. Sabiam que o castelo do conde de Sworth estava localizado na parte norte e bem distante do burburinho central. Ao chegarem junto às primeiras construções contornaram toda a parte habitada a fim de dirigirem-se diretamente a seu destino. A preocupação de ainda serem descobertos pelos asseclas do arrendatário— que jurara encontrá-los a qualquer custo — fê-los distanciarem-se o mais possível das vistas de qualquer autoridade que tivesse algum resquício de uniforme com as cores inglesas.

Não foi muito fácil encontrarem o endereço fornecido pelo conde. Mesmo recebendo instruções detalhadas tudo lhes parecia tão igual. Casas iguais. Ultrapassavam uma pequena colina esparsamente povoada e já aparecia outra. Não imaginavam que Dublin fosse agora o centro de atração de toda a Irlanda. Acampamentos constituídos de barracas de lona sucediam a outros de ínfimas moradas. Tudo tão diferente de quando George e seu amigo Sean, quando mais jovens, por ali estiveram a aventurar-se.

Nas ruas por onde passavam encontravam pessoas tristes, acabrunhadas, de cabeça baixa, a maioria de uma magreza inconcebível numa pujante Irlanda de décadas atrás.

Finalmente, quando a tarde se punha e o sol estava já a se esconder atrás de uma colina, avistaram uma grande construção que lhes parecia ser a descrita pelo conde como o castelo que estavam a procurar.

Não era um castelo como os que George ouvira falar. Não tão grande e nem tão exuberante. Não era cercado por um rio e nem ponte levadiça havia. Era apenas um castelo que servia de morada a um conde amigo do povo. Pararam defronte a um grande portão. Havia um longo cordão de ferro dependurado. Ao lado um aviso solicitando aos visitantes que o acionassem e logo seriam atendidos. Assim fizeram. Um jovial senhor de cabelos brancos veio atendê-los. Apresentaram o cartão com as recomendações do conde. De pronto os portões foram abertos e puderam entrar no grande pátio com seu carreto e seus pertences.

— Sejam bem-vindos senhor George e senhora Sinead. Se o conde os mandou aqui, aqui terão morada e trabalho.

— Muito obrigada, senhor…

— Brendon, meu nome é Brendon e estou às suas ordens para ajudá-los a recolher seu carreto. Enquanto a senhora pode se acomodar aqui nesta sala vou ajudar o senhor George a descarregar suas bagagens e mostrar-lhe onde fica o estábulo para guardar seu cavalo.

Tudo foi muito rápido e muito simples. Brendon levou-os aos aposentos da criadagem. Um bom quarto a eles foi destinado. Depois de descansarem e trocarem suas vestimentas foram guiados até a cozinha e apresentados aos demais companheiros que no castelo trabalhavam.

— Amanhã cedo, senhor George, mostrarei ao senhor os seus afazeres, bem como os deveres que caberão à senhora. Por hoje descansem. Se quiserem comer algo quente vou já conduzi-los até a cozinha. O grande fogão está sempre com o fogo aceso.

George deveria, por ora, enquanto o conde não retornasse à casa, ficar cuidando do estábulo. A Sinead coube um serviço leve dado à sua gravidez. Ficaria encarregada da rouparia e de verificar diariamente a ordem e limpeza dos quarto e salões.

Algumas semanas mais tarde o Conde de Sworth retornou de suas incursões acompanhado de seus vassalos e de mais um grupo de compatriotas que arrebanhou pelo caminho.  Alguns dias após a sua chegada, em certa manhã, dirigiu-se ao estábulo em busca de George. Encontrou-o a treinar um potrinho a trotear de um modo diferente.

— Bom dia, senhor Conde… — balbuciou George, surpreso ao ver o patrão aparecer assim tão cedo.

— Bom dia, George. Gostei da maneira como ensina o jovem cavalinho a trotear. Que outros truques teria você para treinarmos os demais cavalos deste estábulo?

— Bom, senhor conde criei o meu cavalo e os de meus amigos de uma forma a nos ajudarem a nos esconder dos que usam uniformes vermelhos.

  — Vamos lá para dentro a fim de conversarmos sob um teto e distante de certos ouvidos que não deverão nos ouvir.

O conde pediu aos serviçais que trouxessem um grande bule de chá fumegante. Sinal de que a conversa seria longa. Explicou-lhe, em minúcias, os planos que fervilhavam em sua mente.

— Nosso país precisa libertar-se urgentemente da coroa inglesa. Não suportamos mais a carga de impostos que pesa sobre nossas cabeças. A ânsia coletora de libras e mais libras não para de crescer. Durante mais de um mês corri pelas planícies e montanhas de nossa terra. Vi de perto a amargura, o sofrimento, o desgaste físico e moral de nossa gente. Parece que para o reino continuamos com a mesma produção de batatas que sempre empanturrou de ouro as suas burras.

Continuou sua explanação diante de um atento, mas não surpreso George. Pediu-lhe que continuasse a cuidar dos cavalos. Mas não apenas os do estábulo. Também os que acabavam de chegar.

Falou muito sobre a conspiração que se tramava tendo como cabeça um tal de O’Brien, líder do partido Jovem Irlanda. Estavam em intensos preparativos para uma grande revolução pela liberdade de seu país.

George não pensou duas vezes. Aceitou a incumbência de imediato. Já imaginava ver seu filho nascer num país independente.

O tempo foi passando e as incertezas cercavam o grupo de patriotas. Precisavam tramar tudo no mais absoluto sigilo. Escondiam-se em ermos locais a fim de treinarem em segredo suas pequenas e esparsas tropas.

George Sean Emple nasceu em uma Irlanda ainda sob o domínio da coroa de Londres. Sinead teve um parto muito feliz. Tudo correu bem. E o pequeno George Sean cresceu a correr por todas as áreas do castelo que agora era o seu lar e o lar de seus pais. Nem bem era comemorado o seu terceiro ano de vida, quando George foi chamado, às pressas, pelo conde.

— George! Chegou o dia. Iremos agora nos reunir com todos os insurgentes. Parece que a corte está enfeitando todos os ingleses com o uniforme vermelho e eles estão vindo em bandos para nos intimidar.

Os patriotas irlandeses montavam emboscadas sutis. Conseguiram, por algum tempo, dominar seus inimigos. Mas eles eram muitos. Pareciam multiplicar-se em proporção geométrica.

George fazia parte de um dos grupos comandados por O’Brian. Circulavam, disfarçadamente, pelos condados mais distantes até, convocando todos à revolta. A última reunião dos líderes da Jovem Irlanda ocorreu em meados do verão de 1848. Surpreendidos pela própria polícia irlandesa montaram barricadas, tentando, a todo custo, não se entregarem e não serem presos. Refugiaram-se dentro de uma casa. Conseguiram até fazer alguns reféns. Apelaram para os policiais que estavam do lado de fora:

“— Somos todos irlandeses. Deixem as armas e seremos todos livres.”

Mas o pior aconteceu. De pronto ouviram-se tiros. Os feridos eram muitos. Os líderes revolucionários foram presos e condenados à pena de morte. Mais tarde esta execução foi revogada. No entanto foram desterrados para viver em várias colônias penais na Terra de Van Dien, Tasmânia.

**

Nem todos os cavaleiros do grupo dirigido pelo conde sobreviveram ao embate. Os poucos que saíram ilesos ou com poucos ferimentos esgueiraram-se por detrás de algumas construções abandonadas. Simularam tratar-se apenas de grupos de campônios que deixavam suas terras naquela tarde lúgubre. Tentaram levar Georges, embora já moribundo, ao castelo do Conde de Sworth onde poderia receber assistência médica. Não sobreviveu aos ferimentos ocasionados por inúmeras balas em seu tórax e abdômen. 

Como sombras, esgueirando-se entre muros e paredes perpassaram, isolados, um a um, com um bom tempo de intervalo entre eles, o grande portão do castelo.

Sinead ao defrontar-se com o corpo inerte de George foi acometida das reações mais adversas que se pode imaginar. O grito que soltou ressoou pelas paredes do casteloa atingindo os arredores onde animais que já dormitavam saíram a correr pelos campos soltando, cada um, seus lúgubres sons característicos. Em seguida desmaiou. As demais servas da casa choravam sem parar. Foi a mais longa das noites no castelo que antes só via alegria.

O Conde sobreviveu mas as balas que atingiram sua coxa obrigaram-no a perder todo o membro inferior esquerdo.

Sinead passava os dias a olhar os horizontes, como se de algum ponto George pudesse repentinamente, surgir. Olhar baço, que dia a dia perdia mais o viço. Não se ouvia mais o seu sorriso, mesmo que fosse um sorriso triste. Não ligava mais para sua aparência e nem para seu filho. Cabelos desgrenhados, roupas a se encardir e as estraçalhar-se em seu corpo com o passar do tempo.

Quando decidiram interná-la em um hospital para doentes mentais, parece que algo brilhou dentro dela. Pediu-lhes, pela memória de George, que a deixassem ali permanecer ao lado de seu pequeno Sean George. Foi o instinto materno que nela acordou a necessidade de pensar em si e no seu menino sardento e de cabelos ruivos iguais ao pai.

 

*Mais um trecho de um livro em elaboração.

** Baseado na História da Irlanda.

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