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Fatídica obsessão

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A olhar as fantasmáticas imagens em que as águas se transmutavam, vagueou seu pensamento para tempos de outrora

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Em cascatas borbulhantes despencava o aguaceiro pelas bordas do telhado. Através da cortina transparente da translúcida água a cair ela olhava o turvo céu do entardecer.

  Fantasmagóricas imagens bruxuleantes alternavam-se ante seus olhos. E ela viajou com as águas, pelas águas e através das águas.

 Alternavam-se ribombos e relâmpagos. A tempestade não dava trégua. Continuamente a água a verter de nuvens ensandecidas, a cada vez em maior velocidade impulsionadas pelo vendaval, varriam os céus. E delas borbotões incessantes desciam estrondosamente como a querer lavar a terra e tudo que nela existe.

 Animada com a perspectiva de umas férias após longos anos de trabalho incessante, aguardava que o tempo amainasse para embarcar em seu carrinho esporte rumo a uma paradisíaca e longínqua praia. Seria uma longa viagem em busca de paz e de esquecimento. Esperava que outras paisagens e outro clima lavassem sua alma como estas águas que agora varriam a terra.

Sempre mergulhara por inteiro em tudo o que fazia. Por mil vezes dilacerara sua alma em busca do mais perfeito. Até o dia em que a estafa chegou. Estafa em sua alma, estafa em sua mente, estava em seu corpo. Foram dezenas de anos de intenso e ininterrupto trabalho. De tudo resultara o trapo como agora se sentia.

A olhar as fantasmáticas imagens em que as águas se transmutavam, Maria Aparecida vagueou seu pensamento para tempos de outrora. Quantas histórias de amor e paixão, algumas trágicas, outras ditosas, ouvira em sua vida. Foram milhares de pessoas que passaram por sua vida. Sempre tinha ouvidos carinhosos para a tudo escutar. Algumas calaram profundamente dentro de seu eu. Outras, talvez por menos contundentes, passaram ao largo.

Então a imagem de uma jovem que chegara em coma às suas mãos perpassou pela memória. Foi como se a visse em meio à cortina de água que do céu caía.

Ninguém soube contar quantos comprimidos de um potente barbitúrico havia ingerido. Um medicamento que não se adquiria em farmácia. Era para uso exclusivo em hospitais. Depois ficou sabendo que a moça conseguira ludibriar uma amiga que em uma casa de saúde trabalhava. Chorara no ombro dela dizendo ser para seu avô, bem velhinho, já que passava as noites sem dormir. Ao ver as lágrimas nos olhos da amiga a auxiliar de farmácia compadecera-se do pobre ancião. Era um tempo em que não havia ainda controle para o uso de opiáceos e congêneres.

Após realizados os procedimentos de praxe para uma reanimação e quase uma ressuscitação a garota abriu os olhos. Indignada ao ver que tinham sido inúteis os seus esforços para dar cabo à vida, tentou apoiar-se no leito para encetar uma fuga bem aos olhos da equipe que estava ao lado. Mas os efeitos deletérios dos barbitúricos ingeridos ainda restavam em seu frágil corpo.

No correr dos dias em que permaneceu no hospital parecia que a moça estava mais conformada com a situação. Havia apoio religioso e psicológico a que ela não dava muito valor. Sorria diferente quando via a médica residente nas visitas diárias. As conversas entre elas começaram a ser mais longas. Pequenos detalhes de sua vida ela deixava escorrer pelo vão dos dedos.

Era pianista. Estudava no mais famoso conservatório da grande cidade. Morava sozinha em um pequeno apartamento de apenas duas peças.

Sozinha. A médica ficou apreensiva. Era chegado o dia da alta hospitalar e não tinha coragem de deixá-la voltar para o mesmo local onde ocorrera o seu quase desenlace. Não fosse um desconhecido vizinho que morava — sozinho também—, em um apartamento ao lado, esta moça teria morrido. Nem o nome dela ele sabia. Disse que não fazia ideia de como ela lá fora parar.

Coincidentemente era um pianista também…  Como era lógico não poderia desincumbir-se de ficar com a moça a seus cuidados.

A médica ficou a ruminar aquele dilema por dias seguidos. Na ficha hospitalar havia sido registrada apenas como “Desconhecida”. Chegara na emergência apenas com a roupa do corpo. O pianista encontrara-a caída, já em coma, na porta do apartamento dele. Imagine-se o susto.

Maria dos Anjos então apresentou-se para a equipe. Agradeceu os cuidados e falou que voltaria para casa.

— Ah! Como já somos amigos íntimos, após tantos dias aqui junto de vocês, podem me chamar de Jinha, meu apelido de infância. — Disse, a sorrir.

Teimava em retornar a seu velho lar. Inúteis as tentativas de influenciá-la a procurar outro canto para morar. Com alguma colega. Em alguma pensão. Alugar um quarto em uma casa de família. Nada.

Por fim Maria Aparecida resolveu dar-lhe uma carona em seu carro. Fez voltas pela cidade e levou-a para a sua casa. Convenceu-a de que seria apenas para jantar. A conversa correu noite adentro. Teve que ficar para dormir. No dia seguinte o carinho a mãe de Maria Aparecida cativou-a. E ela foi ficando.

Aos poucos Jinha já deixava escapar mais detalhes de sua vida. Da paixão que corroera sua vida.

Alguns meses após entrar no conservatório assistiu a um concerto de um jovem pianista que começava a brilhar nos palcos da cidade. Foi olhar para aquele jovem a dedilhar seus longos dedos pelo teclado de um piano que a paixão explodiu em seu eu.

Mergulhou na vida do artista. Não perdia mais nenhum de seus recitais. Era algo mais forte que ela. Até no ar que respirava via a imagem dele. Descobriu onde morava. Mudou-se para um apartamento vizinho a ele. Ficava atenta aos horários em que ele costumava sair e colocava-se no corredor para vê-lo e aspirar seu perfume.

Certa vez ele deixou o apartamento às pressas e a porta ficou aberta. Entrou. Extasiou-se com tudo o que via. Passou as mãos pelo teclado amado. E assim, embevecida a tocar a “Sonata ao Luar”, de Beethoven, estava ela que não percebeu alguém a seu lado. Era ele. Levantou-se de súbito. Quis correr. Mas ele a tomou em seus braços. Jinha abraçou-o e beijou-o com fúria. O rapaz nem titubeou. Levou-a para seu quarto. Colada ao corpo dele ela entrou em êxtase. Imaginava já que ele seria seu para sempre.

E foi então que um dia, ao voltar do conservatório encontrou uma beldade na porta, ao lado do pianista. Estática viu-a nos braços dele que embevecido beijava-a com paixão e para a rua saíram abraçados.

Jinha não dormiu aquela noite. A obsessão pelo pianista tomara conta de seu eu. No dia seguinte não foi ao conservatório. Ficava no corredor à espera dele. Que passava por ela como se ela fosse apenas uma parede.

No desespero da paixão por um homem que nem mais a reconhecia ao passar por ela tomou a drástica decisão de dar fim à sua vida. Conseguiu os barbitúricos com a amiga, comprou uma garrafa de um uísque barato e ingeriu-os um a um. Já quase madrugada arrastou-se até a porta do amor de sua vida. E ali, inerte, em coma, por ele foi encontrada.

Ele nem sequer sabia quem era aquela moça que no corredor encontrou naquela manhã ao sair de casa…

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