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Entre cordas e cartas

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A paixão por sua música era intensa. Por dias deixava-se ficar em casa a tanger as cordas de seu mágico instrumento

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Vivera em um mundo ilusório, em um mundo de fantasia.

Agora nada ou pouco lhe restara dos áureos tempos em que era reverenciado como se fora um príncipe. Como se fora, não! Em sua arte fora, sim, um príncipe! Por décadas percorrera teatros e palácios onde era aplaudido em pé até por reis e rainhas.

Não era belo. Mas mesmo assim mulheres desmaiavam ao vê-lo tanger as cordas de seu violino.

Era um garoto prodígio. Criança ainda já encantava os que o rodeavam com a magia de sua arte.

Mas… não era apenas um mago nas melodias enviadas ao espaço por suas mãos.

Ao presenciar garotos a jogar bolinha de gude começou um jogo de apostas. Não, ele não jogava as bolinhas. O jogo dele era outro. Ganharia quem acertasse o que fizesse mais pontos. Assim como ganhava, perdia também. O importante era a emoção de apostar.

Esmerou-se nas aulas de música. Ao ponto de seus mestres nada mais terem a lhe ensinar. Esmerou-se nas apostas de tudo em que se pudesse imaginar. Até o ponto em que mil malabarismos fazia a fim de que alguns tostões lhe sobrassem para, ao menos, no assento de um bonde na manhã seguinte pudesse para sua casa voltar.

Era jovem. Não havia cansaço. Não havia estafa.

A paixão por sua música era intensa. Por dias deixava-se ficar em casa a tanger as cordas de seu mágico instrumento. Ensaiava, ensaiava, ensaiava, horas e horas a fio.

Empregados obrigavam-no a engolir copos e copos de água ao perceberem que sua saliva já se transformava em pegajosa espuma a escorrer pelas comissuras labiais. Ao notarem o suor que de sua fronte, de suas mãos e de seu corpo escorria era frio e pegajoso, amparavam-no, colocavam-no em um poltrona e ministravam-lhe uma mistura glicosada.

Nem se dirigia para a mesa posta ao lado a fim de alimentar-se devidamente e repor o perdido substrato tão necessário à sua sobrevivência. Era o sentir-se restabelecido e retornava às suas cordas mágicas, como se duendes delas tomassem conta e arrastassem-no para outras dimensões.

Não havia paz para o seu errante espírito. Não havia uma estação específica para as suas públicas apresentações triunfais. Flanava entre as casas de espetáculos das mais convidativas cidades dos dois hemisférios.

Jamais se sentira satisfeito com sua arte. Precisava esmerar-se a cada dia mais. Aceitava contratos que duravam até por uma semana em cidades onde se situassem os melhores cassinos.

Com os últimos acordes ainda no ar sumia para dentro de seu camarim com a sacra intenção de por um buraco sumir para longe da fanática turbamulta que sua presença exigia. Ansioso, obrigava-se a todos atender com um sorriso, autografando todo e qualquer tipo de papel ou cartão para os admiradores que a seus pés se ajoelhavam. Fotógrafos a ofuscarem-lhe os olhos com a intensidades das luzes que sobre ele incidiam a fim de as melhores imagens captarem.

Um prurido incoercível começava a tomar conta de seu corpo. Um frio suor tomava conta de suas mãos. O abnegado mordomo que dele tomava conta há uma vida, ao perceber aqueles silenciosos sintomas, iniciava, na distância, a contenção dos alucinados admiradores.

E de forma sutil, em meio às brumas, sumiam por obscuros caminhos em busca das mesas dos mais variados jogos de azar de um cassino. E as endiabradas mãos que até então tangiam cordas fazendo delirar multidões envolviam cartas, jogavam bolinhas vermelhas ou pretas nas mesas e roletas cobertas de feltro verde.

Chegava a madrugada, o sol logo estaria entrando pelos janelões, o bulício da cidade já se fazia ouvir e ele ainda ali a jogar, a ganhar, a jogar, a perder, numa ânsia sem fim, sem fim, sem fim. Olhos avermelhados e esbugalhados, faces brancas e encovadas, em meio a outros tantos, que, como ele, do entorno daquelas mesas jamais se afastavam.

Enfim, no crepúsculo do entardecer, quando os últimos raios do sol multiplicavam-se em coloridos e estupendos arcos-íris seu exaurido corpo tombava, em estafa, sobre a mesa. Seu fiel mordomo reanimava-o com sucos de frutas hiperglicosados.

Se auspiciosas foram as últimas horas carregava inúmeros convidados para o iate e ou mansão que acabara de ganhar nas mesas de jogos — que desta vez haviam sido de sorte —e a festa prolongava-se por mais uma noite.

Era chegada então a hora de descansar e preparar-se para um novo concerto. Energias repostas iniciava-se outro ciclo.

E assim seguia ele pelo mundo. Atraindo multidões com sua arte. Fortunas acumulava-se em sua conta bancária e esvaíam-se como nuvens que a mais leve brisa espalhava no ar.

Economistas aconselharam-no a investir no mercado de capitais a fortuna que ganhava em suas apresentações mundo afora. Recebia fortunas a cada contrato. Até aceitou assinar um terno em que o banco somente lhe entregaria o dinheiro após findar o espetáculo. Não adiantou. Os cassinos aceitavam seus vales.

Consumia um mínimo de bebida alcoólica. Era cônscio de que precisava preservar suas mãos. E cérebro. Cansou de ver músicos alcoólatras acabarem com sua arte pelo tremor que os acometia. Cansou de ver inveterados jogadores como ele não mais conseguirem manusear as cartas de um baralho.

Seu velho e fiel mordomo um dia não mais suportou as intempéries da vida e das estações frias. Veio a findar seus dias em uma cadeira de rodas sem mais lembrar-se de nada e de ninguém.

Foi a maior desolação de sua vida. No túmulo do amigo que dele cuidou desde os tempos de que nem se lembrava, jurou, ajoelhado, solenemente, jamais voltar a uma mesa de jogo.

Por um ano, talvez, continuou com seus concertos em todas as estações do ano pelas mais importantes cidades dos dois hemisférios. Passava ao largo dos cassinos.

Até o dia em que o Príncipe de Mônaco implorou-lhe que se apresentasse na famosa Ópera de Monte Carlo. Era um maravilhoso dia primaveril. De floreiras dependuras nas janelas de todas as casas e de todos os edifícios pendiam ramagens exibindo flores de todos os tamanhos e cores. O mundo em redor sorria de felicidade com a chegada da nova estação após os difíceis e cinzentos dias que cobriram o hemisfério norte em um dos mais gélidos invernos.

Já não era mais um jovem cheio de vida. Fios prateados já se imiscuíam em meio a seus longos cabelos que se espalhavam pelos ombros. Vincos em sua face imprimiam-lhe as marcas do tempo.

Naquela noite o cassino de Monte Carlo arrebatou até as últimas moedinhas que desde sua infância escondera nos escaninhos de sua velha carteira.

O desespero dele tomou conta. Após sorver uma deliciosa taça do mais puro e famoso champanhe vagou pelas salas do imponente prédio. Percebeu detalhes fantásticos das obras de arte de cada uma delas. Quando deu por si encontrava-se dentro de um ambiente escuro e de paredes nuas. Uma inscrição chamou sua atenção.

“Neste local deram fim à sua vida aqueles que tudo aqui perderam”.

Era inverno. Festival de Inverno. Encontrava-se em Campos do Jordão. Naquela noite seria homenageado.

Acomodado em uma poltrona, na aconchegante cabana, defronte a um crepitante fogo na lareira em frente, acordou subitamente de um longo cochilo. No ar La Campanella, de Paganini, que gravara há uma vida. Lembrou-se do sonho. Tomara uma taça de vinho do Porto para mais aquecer-se.

Sabia que no passado, em muitos cassinos, havia a tal Sala do Suicídio. Mas, pensou, a de Monte Carlo existiu apenas em meu sonho.

A noite chegava nas montanhas encantadas. Arrumou-se. Vestiu o grosso sobretudo, lembrança que restou de um passado glorioso, cobriu suas cãs com seu chapéu de feltro. Seu violino embaixo do braço.

E saiu para a gélida e encantada noite invernal entre as encostas da Serra da Mantiqueira.

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