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Uma médica no sertão do Brasil

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Subitamente, surgiu à sua frente o grande amor da vida de Thalia

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Thalia era uma garota muito religiosa. Nascida em uma família católica seus primeiros estudos foram em um austero colégio de freiras francesas. Ao escolher ser médica mudou para uma cidade maior e ficou morando, uma vez mais, em um pensionato regido por religiosas da mesma congregação. Nada alterou sua rotina. Assistia diariamente à Santa Missa e continuou com todo o místico ritual que a acompanhava desde a infância. Diariamente, após o jantar e antes de iniciarem os folguedos e jogos recreativos era ela quem tomava o rosário nas mãos e puxava o terço e demais orações.

Foi lá pelos meados do quarto ano de medicina que em sua cabeça umas vespas diferentes começaram a zunir. Naquele tempo começava-se a frequentar as enfermarias da Santa Casa de Misericórdia somente nesta fase.

E foi lá que seu coração entrou em polvorosa. Mesmo sabendo das mazelas que afetam, desde sempre, o nosso mundo, não se conformava com a desolação em tudo o que via. Era sofrimento demais em todas as áreas. Nas enfermarias, nas salas de cirurgia, nos mais variados recintos.

E tinha que ouvir das bondosas freiras que administravam a casa santa o velho bordão.

— É preciso purgar os pecados para entrar no reino dos céus. Deus é justo, Deus é Pai. Não abandona as suas ovelhinhas e lhes dá a oportunidade de sofrerem as agruras da carne para melhor servi-lo.

Thalia não sentia aquela amargura sozinha. Sempre que ouvia tais palavras trocava olhares de cumplicidade com os colegas.

A desolação maior fez-se presente quando chegou a vez de frequentar a ala pediátrica. Um choro convulsivo tomou conta de seu eu e não conseguiu conter suas emoções.

Qual o pecado que este serzinho envolto em brancos lençóis, quase inerte em um bercinho hospitalar, teria feito para ter esta enorme dívida com o Pai Celestial?

Não só uma criança. Muitas. Com bandagens a cobrir seus frágeis e quase sumidos corpinhos. Pequeninos seres que ainda nem balbuciar uma palavra sabiam e lá estavam a recuperar-se da cirurgia de um tumor cerebral, de um tumor de intestino, de uma cirurgia cardíaca.

Não foi assim, de súbito, que Thalia deixou de assistir aos ofícios religiosos no pensionato das freiras onde morava. Já não acordava mais de madrugada para ir à missa das seis horas na capela. Passava até altas horas a estudar e não conseguia mais sair tão cedo da cama, era a desculpa, entre um meio sorriso, a dar a quem estranhava a mudança de sua rotina.

A rotina do pensionato adicionada aos rígidos horários, com o passar do tempo não era mais o lugar ideal para a vida das jovens universitárias.

Sempre existem pessoas que moram sozinhas e procuram alguém para dividir as despesas de um apartamento. Mudaram-se para um prédio no centro da cidade que ficava a poucos metros do local onde eram ministradas as aulas das cadeiras dos anos mais avançados do curso de medicina.

 Raramente Thalia voltara a entrar em uma igreja. O mundo dos céus que a acompanhara desde o seu nascimento já não existia mais. No fundo, bem no fundo de seu coração, ela sentia que não era uma pessoa ateia. Que algo além deveria existir. Mas não da forma como havia estudado desde sempre.

Os anos de residência médica parece que voaram. Um mundo novo em outra Santa Casa de Misericórdia de outra grande cidade.

Quando tudo lá findou sentia-se como uma criança perdida. Precisava agora iniciar a vida profissional sem a tutela dos professores, dos assistentes.

Sempre sonhara em trabalhar nos mais longínquos locais onde não poderia sequer contar com a valiosa ajuda de exames complementares de diagnóstico. Para isto esmerara-se em clínica médica a fim de perceber apenas com o que aprendera a resolver os mais diferentes problemas.

Jogou-se, de corpo e alma, no trabalho em uma cidade perdida deste nosso imenso território. Era uma cidade de pequeno porte, próspera, onde corria muito dinheiro às custas da plantação e colheita dos mais variados cereais.

Não era bem em um local assim que ela imaginara viver. Embrenhou-se então sertão adentro. Foi trabalhar na clínica de um excelente médico clínico que já lá vivia há algum tempo.

Atendia o povo do lugar e sempre havia tempo para ouvir belas melodias no rádio ou em um toca-discos movido a bateria.

Como era uma cidade que ficava longe de tudo nem se podia cogitar em energia elétrica, muito menos em ruas e estradas asfaltadas. Água tratada e canalizada nem em sonhos. Poeira vermelha nos tempos de estiagem e um lamaçal onde atolavam até jipes com pneu lameiro e tração nas quatro rodas nos dias de chuva.

E eram nestes veículos que os representantes dos laboratórios da indústria farmacêutica lá chegavam para entregar suas amostras e seus coloridos panfletos.

Certo dia o representante de um bem conceituado laboratório pertencente a uma multinacional, em vez de entregar amostras de um novo analgésico, presenteou-a com uma caixa inteira de uma embalagem hospitalar.

Thalia ficou muito feliz, pois atendia tanto familiares como os próprios peões que trabalhavam nas fazendas do entorno da cidade. Pessoas que quase nunca tinham o necessário para sobreviver, que dirá para pagar os medicamentos que ela lhes receitava.

No mês seguinte ele lhe traz de presente três livros. Eram três romances de autoria de um tal de Francisco Cândido Xavier, um escritor de quem ela nunca ouvira falar.

Ivo, o representante do laboratório, a cada visita mensal perguntava-lhe se começara a lê-los. E sempre a mesma resposta:

— Sabe, meu amigo, saio sempre tarde aqui do consultório e preciso estudar os novos casos clínicos que aparecem e não consigo encontrar tempo para outras leituras. Mas prometo que qualquer dia eu os lerei.

Ivo pedia desculpas pela insistência. Dizia-lhe, no entanto, que recebera, como missão, em um centro espírita da cidade onde residia, presenteá-la com aqueles livros. Que ela precisaria muito lê-los.

Entregou-lhe mais alguns que explicavam melhor o que era a Doutrina Espírita. Livros escritos por Allan Kardec, o precursor do espiritismo.

Os exemplares eram umas tímidas brochuras, com parágrafos imensos, letra miúda e nada atraentes. Ainda mais quando ela leu que eram livros escritos por um espírito e psicografados por um autor terreno.

O médico com quem ela trabalhava era grande amigo de um dos farmacêuticos da cidadezinha.

Subitamente, surgiu à sua frente o grande amor da vida de Thalia. O que não agradou nada nem ao médico e nem à sua esposa. Nunca se soube os porquês desta barreira colocada em meio ao amor dos dois.

O tumulto começou na vida de Thalia. Teve que deixar a casa do casal, procurar outro canto para morar e para instalar seu consultório.

Naqueles dias de desespero, sentindo-se enxotada, ao colocar em ordem sua estante depara-se com os livros que o amigo Ivo lhe dera.

Percebeu que havia uma sequência. Aleatoriamente abriu as páginas do primeiro. “Há dois mil anos”, seu título. Algo que nunca fez na vida ao ler um livro. Sempre começava pela primeira página. Abriu desmesuradamente os olhos quando se deparou com a história de um homem da Galileia. Falava em Jesus e em Maria.

Passou a noite a lê-lo. Até acabar o querosene de seu lampião Aladim.

Há muito ainda para se contar sobre a história da médica Thalia, uma amiga que conheci, por acaso, em um Congresso Brasileiro de Anestesiologia.

(continua)

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