Celebrar a Revolução Farroupilha é lembrar um período importante de luta pela autonomia e pelos ideais republicanos
Rafael Garcia dos Santos*
No Rio Grande do Sul o mês de setembro tem uma particularidade, representa o que historiadores mais efusivos chamam de “o mês da epopeia farroupilha”. Simplificando, é um mês em que se celebra e dignifica a empreitada autonomista e republicana liderada por caudilhos, na maioria ligados à produção do charque, no séc. XIX, na então Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Até hoje, o feito farrapo do período imperial gera anseios libertários e de problematização sobre o tema da autonomia do Rio Grande, assim como de uma revisão do atual Pacto Federativo, onde a centralização do poder em Brasília e a distribuição desequilibrada dos recursos entre os estados é o alvo principal.
Acho prudente esclarecer, ainda, uma ou duas coisas. Sou sociólogo de formação e a evolução dos meus estudos me levou a ter maior dedicação sobre temas ligados às relações internacionais, contudo, enquanto sociólogo, refletir sobre a representação da história e da cultura sobre o cotidiano de uma coletividade organizada é papel fundamental, e tenho vínculo afetivo e conhecimento historiográfico sobre a história gaúcha suficientes a ponto de fazer essa reflexão. Além disso, fazer a defesa do orgulho gaúcho, de forma alguma significa qualquer depreciação aos demais estados, ou ao Brasil de forma geral.
Para deixar isso bem claro da minha parte, acrescento que, ainda que concebido e criado em Porto Alegre desde os vinte e seis dias de vida, surpreendentemente para muitos, meu local de nascimento é Recife, no estado de Pernambuco. Por motivos profissionais do meu pai, no período em que eu era gestado, meus pais precisaram se deslocar temporariamente até o nordeste brasileiro para que meu pai cumprisse um contrato de quatro meses assessorando uma indústria que lá estava alocada em 1985. Dito isso, ainda que etnicamente gaúcho, de criação e procedência paterna e materna, há uma parte minha que NÃO é gaúcha, a que corresponde a naturalidade. Portanto, espero que não se confunda esse artigo, de forma alguma, com qualquer tipo de orgulho xenófobo.
Reiterando o contexto.
Como dito antes, a Semana Farroupilha é uma celebração anual no Rio Grande do Sul que homenageia a Revolução Farroupilha (1835-1845) e celebra a cultura gaúcha em todas as suas formas. No entanto, como em muitos eventos culturais, a Semana Farroupilha também enfrenta críticas de diversas naturezas. Com base nisso, procuro aqui refletir sobre algumas dessas críticas e destacar a importância dessa celebração.
A Semana Farroupilha é uma festa ultrapassada e desnecessária?
A Semana Farroupilha tem raízes históricas profundas e é uma oportunidade para as pessoas se conectarem com a história e a cultura do Rio Grande do Sul. Celebrar a Revolução Farroupilha é lembrar um período importante de luta pela autonomia e pelos ideais republicanos. Além disso, a cultura gaúcha é rica e única, como todas, e a Semana Farroupilha oferece uma oportunidade de apreciar e preservar essas tradições peculiares.
A Semana Farroupilha é exclusiva e segregadora; acusada de ter raízes racistas e exaltar um passado escravagista?
Embora a Semana Farroupilha celebre a cultura gaúcha, ela não é exclusiva. É uma festa aberta a todos que desejam aprender e apreciar a cultura gaúcha. Muitos eventos oferecem oportunidades para pessoas de diferentes origens culturais participarem, aprendendo sobre a culinária, a música e as danças gaúchas. A inclusão é um aspecto importante da celebração. Indo muito além disso há, inclusive, não se pode deixar de mencionar, um apelo turístico comercial voltado justamente para atrair visitantes de outros estados e regiões. Em outros termos, a Semana Farroupilha é uma celebração gaúcha, mas que não se volta exclusivamente para os gaúchos.
Indo além, essa crítica não considera o contexto histórico da Revolução Farroupilha. Na verdade, a revolta liderada por Bento Gonçalves e outros líderes gaúchos tinha um forte aspecto abolicionista desde o seu início, lembrando que os sopros da Revolução Francesa influenciava o contexto imperial. Um dos principais objetivos dos farrapos era a luta contra a escravidão, promovendo a liberdade para todos, independentemente de sua origem étnica. A Revolução Farroupilha estabeleceu leis abolicionistas em áreas sob controle rebelde, muito antes de a escravidão ser abolida em todo o Brasil, uma vez que os ideais iluministas e do liberalismo político e foram os alicerces ideológicos elementares da revolta.
A Semana Farroupilha é, portanto, uma oportunidade para lembrar e destacar esse compromisso abolicionista da Revolução Farroupilha. Os eventos e atividades durante a semana cívica enfatizam a importância da igualdade e da justiça social, promovendo um entendimento mais completo da história e dos ideais da revolta. Portanto, não é correto acusar a Semana Farroupilha de promover o racismo, já que ela é uma celebração da diversidade e da luta pela igualdade que está enraizada em sua história.
A Semana Farroupilha promove o elitismo e o estereótipo do gaúcho rude?
A Semana Farroupilha busca promover uma compreensão mais profunda da cultura gaúcha, que é rica e diversificada. Ela não se limita a estereótipos simplistas. Além disso, a ideia de elitismo não reflete a realidade da maioria dos eventos da Semana Farroupilha, que são acessíveis ao público em geral mesmo após a privatização do Parque Harmônia. O objetivo é compartilhar e celebrar a cultura, não excluí-la.
A Semana Farroupilha é uma desculpa para beber e promove o consumo excessivo de álcool?
Embora a Semana Farroupilha possa incluir festividades em que são consumidas bebidas alcoólicas, isso não é sua característica principal. É importante lembrar que, como em qualquer evento, o consumo responsável de álcool é pacífico e legal. Eventuais exageros ficam por conta da pontualidade de ações individuais que não representam a prática da maioria. A celebração não se baseia no consumo de álcool, mas sim na música, na dança, na culinária e na história gaúcha.
A Semana Farroupilha celebra uma guerra que o Rio Grande do Sul perdeu, promovendo um sentimento de derrota?
Embora a Revolução Farroupilha tenha terminado com uma aparência de derrota para os rebeldes gaúchos, militarmente nunca houve um combate frente a frente contra a as tropas imperiais, e as poucas vezes que o exército imperial venceu, conforme registros historiográficos de ambos os lados, ocorreram por táticas de emboscada, algumas delas até desafiaram os princípios básicos da ética militar, como é o caso do famigerado “massacre de Porongos”.
Se tratava de um pequeno contingente comparado a um dos exércitos mais fortes do continente naquele período e mesmo assim os farrapos conseguiram levar as tropas imperiais a exaustão. A Semana Farroupilha não se trata de glorificar uma derrota, mas sim de celebrar a luta pela autonomia e pelos ideais republicanos pela qual os antepassados meus e de tantos outros deram suas vidas. Ela destaca a resiliência do povo gaúcho e seu compromisso com os princípios democráticos, que eventualmente seriam adotados em todo o Brasil.
A celebração reconhece a importância da Revolução Farroupilha como um marco histórico que contribuiu para a formação do Rio Grande enquanto, culturalmente, talvez um “país dentro de outro”, até em função de suas particulares influências da cultura rioplatense (um corpo estranho na federação, disse Silvio Romero), independentemente do resultado do armistício. Portanto, a Semana Farroupilha não promove um sentimento de derrota, mas sim um sentimento de orgulho pela bravura e pelos ideais que os rio-grandenses sempre defenderam.
Uma breve conclusão.
A Semana Farroupilha é uma celebração importante e valiosa que não merece ser objeto de críticas infundadas. Promove a cultura, a história e as tradições do Rio Grande do Sul, e oferece oportunidades para a inclusão e a celebração da diversidade do nosso país. Como qualquer evento, a Semana Farroupilha evolui e se adapta com o tempo para refletir os valores e as necessidades da sociedade contemporânea. É parte essencial do patrimônio cultural do Rio Grande do Sul e uma ocasião para todos os rio-grandenses se unirem em celebração a sua identidade regional. Por sua formação histórica e cultural, o gaúcho é uma amálgama de anseio libertário, disposição bélica e orgulho regionalista. Assim somos, não nos envergonhamos e queremos nos apresentar.
*Rafael Garcia dos Santos é sociólogo