Era um polaco de Kichute, diferente da maioria pé descalça
Fernando Tokarski
Eu era um adolescente bacana, usava calça boca de sino e coloridos coletes de lã quando a TV me apresentou uma dupla muito supimpa. A música-tema até hoje reverbera em minha cabeça, posto que alegre e fácil: “Hey, Shazan, herói de revista em quadrinhos…!”
Em um campinho diante do cemitério de Canoinhas, onde ainda resido, jogávamos futebol num velho potreiro e não raro alguém mais estabanado, entre os quais me incluo, dava uma bicuda atômica. A bola da capotão zumbia no ar e aos pingos se escondia entre as sepulturas dos ricos falecidos da cidade, logo no acesso à necrópole. Filho de um farmacêutico prático e comerciante, eu também era visto pelos demais futebolistas como um pequeno remediado, pois tinha o privilégio de usar um belo par de Kichute. Era um polaco de Kichute, diferente da maioria pé descalça!
Fedido e extenuado, quando não cheio de hematomas nas magras canelas, voltava para casa. Logo na boca da noite viria um momento sagrado, o programa de “Shazan, Xerife & Cia.” Então um momento mágico invadia a tela do televisor. Em Canoinhas, assim como nas outras cidades do Planalto Norte de Santa Catarina, por diversas razões históricas, culturais e econômicas, sempre fomos noventa por cento paranaenses. Naqueles tempos shazi-xerifanos, a única emissora televisiva que se captava nos recônditos das araucárias e dos ervais do Contestado era a TV Paranaense, afiliada da Globo. A transmissão era péssima. Se prenunciando alguma intempérie ventava ao norte do Rio Grande do Sul, o sinal caia em Canoinhas. Mesmo assim, assistir o astuto duo da camicleta era uma dádiva.
Durante décadas depois, quando ocasionalmente vi algum naco das telenovelas globais, jamais consegui identificar os atores Paulo José e Flávio Migliaccio com tais nomes. Para mim sempre foram apenas e especialmente Shazan e Xerife.
– O que o Xerife está fazendo atrás de uma espelunca de balcão, vendendo porcarias de botequim?
Há pouco tempo, quando soube do trágico passamento de Migliaccio, somente tive uma reação:
– Putz! Como o Xerife, um herói, foi morrer assim?
Concluí que heróis mortais morrem como simples mortais. Assim como eu, um pobre mortal trabalhador da história e das letras.
* Originalmente esta crônica foi publicada no livro Camicleta: Manual dos proprietários. Adami, Saulo. Curitiba: Estrada de Papel, 2022.