sábado, 27

de

abril

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2024

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Um sonho em telas e papéis

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Lembrar da velha casa de madeira, a escada e a varanda, o toca-discos a rodar sinfonias e concertos

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No sereno da noite molhada em luar deixo aquele canto encantado rumo ao infinito. No retângulo de luz suas silhuetas e atrás um mundo de fantasia, cores, magia.

Dentro de mim, suas vozes.

A lembrar de valsas ouvidas nos bosques de Viena, o bulício, o ruflar de pés na areia entremeando a grama recheada de círculos floridos em todos os tons do arco-íris.

A mostrar coloridos papéis onde imagens e poemas de variados meridianos nossos desfilavam com os mais deslumbrantes crepúsculos do entardecer entre riachos cantantes ou espumas congeladas das ondas do mar a bater nas encostas dos rochedos.

Enfumaçados esboços vagueiam em minha mente.

Lembrar da velha casa de madeira, a escada e a varanda, o toca-discos a rodar sinfonias e concertos.

Cristais de gelo a tilintar no cristal dos copos. Raios de um sol crepuscular, um arco-íris dançante a refratar-se como em um prisma no líquido âmbar, quase cristalino.

Em silêncio ouviam minhas mágoas debruçadas em seus ombros.

Relembrar, muito depois, quando no aconchegante atelier seus sonhos de amor, suas angústias e suas dores eram derramados. E o ombro era o meu.

Relembrar a Quinta Sinfonia ou o Concerto para Violino de Tchaikovsky, modulados pelos límpidos instrumentos de uma orquestra, em êxtase ouvidos enquanto meus olhos perdiam-se pelas paredes carregadas de poemas em verso e em prosa, em telas, óleos, guaches, aquarelas, crayons e toda essa arte que mãos e almas criavam.

Vejo o suave azul de céu mesclado a azul de mar, o verde nosso tão amado das ervas e das heras ladeando e encimando toscas cabanas e suas cercas caboclas, tudo tão Canoinhas.

E a voz dela, em cristalino poema a dizer das veredas e caminhos percorridos em busca de um iluminado infinito.

Depois, girassóis! Ah! Os girassóis fulgurantes, girando o mundo, múltiplas flores, a grande erveira, o imenso azul de um outro céu mudando a paisagem de mar com um quase nada de areia só para dosar com um quê de amarelo o grande poema colorido.

Dela fluíam versos que contavam de girassóis maravilhosos colhidos do aparentemente feio, estéril, sem luz.

Ele amava assim a chuva:

“Gosto de vagar à noite, caminhando no molhado…

lavando a alma, enxaguando a mente…”

Ela, assim:

“Gosto da chuva,

da chuva mansa em meu telhado,

em noite alta, madrugada. ”

E enquanto ouço o ruído das rodas na água da rua lembro-me dos poucos momentos que passei vendo ágeis mãos mesclando tintas, trocando pincéis, montando imenso mural.

Vejo-a nas noites sobre finos papéis, caneta no ar, fumaça do insano cigarro, a tecer versos coloridos que contavam de conchas, maresias, ondas, espumas cristalinas, respingos de prata, estrelas de diamantes submersas, o marulhar, brancos barcos, o corpo líquido, o corpo dela em águas diluído. 

Ele alegrou a vida de tantos pequenos pacientes em nossa humilde enfermaria das crianças quando naquelas paredes inseriu com sua mágica mão um belo painel com figuras de histórias infantis.

Ela afagava os pequenos pacientes contando-lhes das mãos de fada que em horas tardias, quando a lua surgisse, pensariam suas feridas e amainariam suas dores.

Ele coloriu nossa vida, tingiu nossa cidade, colocou sua alma à deriva em tantos retângulos, juntou todas as formas e todos os tons possíveis, onde poemas aderiram e douraram o cotidiano cinzento nosso.

Os poemas dela nas páginas dos jornais eram ansiosamente esperados para colorir o café das manhãs de todos os domingos.

Certo dia um livro nasceu com inspiradas gravuras que carinhosamente ele desenhou para ilustrar os versos que nas madrugadas, debruçada na janela, ela escrevia.

Por que esta fumaça ante meus olhos sempre que eu vejo mais poemas seus elaborados com canetas e pincéis?

Em uma tarde muito especial ele reiniciava a caminhada para a qual viera e o nosso aperto de mãos refletiu a ânsia incontida dos dias tantos passados em branco à espera do milagre que, enfim, floresceu.

Começaram a trabalhar, insanamente, com projetos tão grandiosos para cobrir de arte e com arte toscas e caiadas paredes de um mundo insano que pouco via e quase nada sentia.

Outra obra genial estava em andamento. Tintas em meio às letras que de maneira tão romântica ela colocava em finas folhas coloridas de papel.

Obras de pintores notáveis acumulavam-se em seu tugúrio a aumentar, a cada dia mais, o já magnífico acervo.

Uma vez mais eu tornei a ver o meu menino-amigo, cúmplice de tantas lágrimas e sorrisos compartilhados.

Uma vez mais eu a vi sorrir de alegria levando letras e poesias a todas as escolas de uma cidade inteira.

Quando este lindo tempo que parecia não ter fim apenas se programava, num ruflar de asas ela partiu. A dor que ficou jamais terá fim. A saudade mora ainda dentro de mim.

Meu amigo continuou a levar ao mundo as cores de nossa terra impregnadas com arte em suas telas.

Até o dia em que alçou seu voo, igual gaivota de plumagem cada vez mais branca, mais branca, mais translúcida, na tentativa de superar seu próprio infinito.

Suas silhuetas contra o retângulo de luz no aceno do até amanhã vai diminuindo.

Amanhã retornarei, amigos, ao seu canto encantado e mais uma vez alçaremos nossos voos, falaremos de céus estrelados. Então vocês afastarão as cortinas para vermos a lua nascer no jardim.

*Este texto encontra-se inserido na Coletânea “O Olhar Feminino entre Letras e Tintas”, publicada no ano 2022 pela Associação das Jornalistas e Escritoras do Brasil – Coordenadoria de santa Catarina (ALEBSC), em comemoração ao Centenário da Semana de Arte Moderna de 1922.

**In memoriam aos artistas canoinhenses das Letras e das Tintas Isis Maria Tack Baukat e José Ganem Filho.

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