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Sobre a terrível enchente de 1983

Imagem:Arquivo

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Escritora relembra momentos dramáticos da maior enchente de todos os tempos

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Intensas chuvas incidiram em quantidade muito acima do normal nos últimos meses do ano de um mil e novecentos e oitenta e dois. As águas acumulavam-se por todas as regiões ribeirinhas. Mesmo com as altas temperaturas veraneiras continuavam a esparramar-se um pouco além das margens dos rios.

Foi a partir do mês de maio do ano seguinte — o ano que ficou marcado na memória como o da maior enchente dos últimos tempos – que as quase incessantes precipitações pluviométricas fizeram com que as águas dos rios ultrapassem suas margens e espalharam-se pelos vales afora.

Nada a se temer, pois os terrenos alagadiços eram apenas os costumeiros de todos os anos. As águas invadiam as partes baixas. Invadiam locais que num passado não tão distante eram os escolhidos para o lazer das tardes de domingo.

Nas décadas de 1940 e 1950 eram verdes lagos que se viam ao lado do leito dos rios. Água límpida e transparente que deixava à vista a verde relva que atapetava os terrenos em seu entorno.

Algo estranho, no entanto, estaria acontecendo. As águas não baixavam. O nosso alagado lá continuava em idênticas altura e largura mesmo após longos dias de estiagem.

Registro da enchente de 1983 em Canoinhas

Era um sábado comum do início do mês de julho. Eram poucos ainda os locais onde se pudesse beliscar uns salgadinhos e apreciar uma taça de vinho ou um caneco de chope. Na rua Major Vieira havia um bem especial onde amigos se reuniam.

No entardecer daqueles dias fortes chuvas já encharcavam as ruas. Mas nada que atrapalhasse os que no barzinho ouviam música e bebericavam seus coquetéis.

Passava da meia-noite quando o espaço começou a esvaziar-se e cada um tomou o rumo de sua casa prometendo novo encontro no sábado seguinte.

Quando os carros estavam a trafegar pelas ruas vizinhas ao Arroio do Monjolo, num repente perceberam que havia água por todos os lados. E não era uma chuva torrencial. Mas era preciso dar voltas para não se correrem riscos.

Era noite, madrugada. O mundo a recolher-se em suas casas.

O amanhecer de domingo já mostrava a extensão que as águas haviam atingido. Parece que tudo acontecera em poucas horas.

Tinha-se a impressão de que baldes de água eram jogados do alto de escuras nuvens.

Um silêncio sepulcral a dominar a nossa vila. Não se ouviam sons de motores de veículo. Nem o clarinar dos galos e nem o latir doa cachorros. A energia elétrica deixara-nos na escuridão também de notícias. Pelo velho radinho a pilha só se sabia o que se passava em locais distantes. Porque a nossa rádio local encontrava-se fora do ar. Além da ausência da eletricidade suas instalações também foram atingidas pelas águas.

E as águas a subir, a subir… sem parar… sem parar.

Foi um domingo tumultuoso. Vãs tentativas de se chegar até a cidade de Canoinhas. As duas rodovias transformadas em atoleiros descomunais. Na entrada da cidade, pela rodovia Wendelin Metzger, que fora aberta no leito da antiga via férrea, um lago já se formara.

Uma senhora de nossa vila contava-nos, horrorizada, como viu a rápida subida das águas. Morava em uma região bem abaixo da linha da estrada de ferro.

— Era como quando a gente joga um tacho cheio de água no terreiro. Aquilo vinha com fúria para cima da gente.

As águas chegaram até a porteira da serraria que ficava apenas a alguns metros distante da linha férrea.

Minha mãe era uma garota adolescente em 1913. Lembrava-se — e muito bem —, daquela enchente.

— Em 1913 a enchente chegou até o portão da serraria. Faz 70 anos. O povo naquele tempo afirmava ter ouvido do próprio Monge João Maria que outra igual viria dentro de 70 anos. E repetir-se-ia a cada 70 anos…

Tombeiras da prefeitura e do Departamento de Estradas de Rodagem a despejar pedras britadas na tentativa de que caminhões locupletados de pessoas já desalojadas conseguissem trafegar.

Vista aérea de Canoinhas na enchente de 1983/Foto de Edson Meister, cedidas por Zélia Meister ao jornal Correio do Norte

O posto de saúde era localizado no mesmo local em que funcionava o ambulatório da empresa madeireira WOSA —Wiegando Olsen S. A. E lá tentamos chegar na segunda-feira. Tarefa impossível. O local já fora atingido pelas águas. Urgente mudança era necessária. Para onde?

Tínhamos apenas um local público, distante das águas, disponível em nossa vila, o Grupo Manoel da Silva Quadros. Que a esta hora já estava lotado com famílias que a enchente desalojara.

Arte postada em reportagem especial do jornal Correio do Norte em 2014/Reprodução Correio do Norte

Para uma das salas transferimos os equipamentos, os materiais e os medicamentos. A sala de espera dos pacientes era a longa varanda entre o pátio e as salas de aula. Salas agora a abrigar famílias de desabrigados.

Lá do alto uma vista exuberante. Em mar transformaram-se os campos e a mata. Água até o horizonte distante. Nem copas das imponentes araucárias eram vistas. Tudo sob as águas.

No postinho atendíamos entre 12 a 15 pessoas diariamente. No improvisado local de atendimento havia dias em que lamúrias de mais de 100 pessoas em um só dia eu ouvi.

Dentre tantas doações caixas de medicamentos chegavam às nossas mãos. Era possível, então, ali mesmo, resolvermos muitos problemas.

Minha irmã Avany Dittrich Jürgensen era a diretora do Grupo. Encontrava-se — naquele final de semana em que tudo começou — em Joinville a fazer um curso de pós-graduação. Lá, ela e nossa amiga Regina São Clemente uniram-se a um grupo de voluntários de uma igreja evangélica. Montavam caixas e caixas de roupas, de cobertores, de mantimentos, de medicamentos e até de utensílios de cozinha para enviar para a nossa região.

Foto de Edson Meister, cedidas por Zélia Meister ao jornal Correio do Norte

E entre tantas coisas quase uma centena de pães caseiros.

Um caminhão aporta em nossa vila e descarrega toda esta preciosidade no Grupo Manoel da Silva Quadros. O caminhão passara por trechos alagadiços na rodovia. Chegara a ser puxado por um trator em local onde até a carroceria ficara sob as águas.

Tristemente olhamos para aqueles pães totalmente umedecidos. Alguns até já transformados em mingau.

A solução encontrada foi a de pedir aos abnegados voluntários de nossa vila que os levassem para suas casas e nos fornos de seus fogões deixassem-nos aptos para consumo. E o aroma de pão fresquinho invadiu nossas casas. Na manhã seguinte cestas da melhor iguaria matinal do mundo estavam nas mesas do refeitório do nosso Grupo. Mas durante vários dias ainda todos poderiam deles se locupletar nas refeições.

Quando a merendeira da escola, na manhã seguinte, abre a sala onde estariam os mantimentos encontra-a apenas com algumas roupas sujas.

Uma simples fechadura não resistiu ao arrombamento.

O triste foi saber que algumas poucas pessoas lá alojadas até se digladiaram a fim de repartir o butim. Só restou o aroma do pão que invadira a vila.

O próprio pastor, em pessoa, entregava os produtos às pessoas. Realmente, a preciosa carga daria para uma enorme comunidade. Deram-se ao trabalho de percorrer ainda locais mais distantes onde entregaram enorme quantidade de cobertores.

Embora os trens já não mais circulassem ferroviários providenciaram um vagonete, movido a motor de combustão, que percorria as vilas levando e trazendo pessoas e mercadorias. Foi assim que muitos passageiros do inusitado veículo puderam levar aos desabrigados de sua terra alguns cobertores que mitigariam o desconfortante e úmido frio que nos atingiu naquelas semanas de angústia.

Mesmo diante de toda aquela tragédia sempre havia — como sempre haverá— aproveitadores em torno de uma tragédia.

José João Klempous era o prefeito de Canoinhas naquela triste época. Não mediu esforços na tentativa de dar o melhor de si e o melhor possível a quem necessitasse. Mas não admitia abusos.

Aparecera, ninguém soube de onde, um certo cidadão metido a bacana lá em nosso desolado território. Ficava sentado, a tomar chimarrão e a usufruir da comida, que, a duras penas, na cozinha da escola, as pessoas preparavam. O pátio que além de se transformar em um barro só estava coberto com todo o tipo de resíduos alimentares de vegetais e de animais. Ossos de galinha, cascas de frutas e o que mais que se possa imaginar.

Klempous, ao lá chegar, parecia ter um chicote invisível em suas mãos. Ordens para todo lado. Que a limpeza fosse feita. Com urgência. E a cada um ia perguntando de onde era, de onde vinha e para onde iria. Pelo cangote, literalmente, expulsou o bon-vivant de nosso tugúrio.

E fez-se a ordem e a limpeza em nosso reino encantado.

Eu entrava no grupo por uma rua lateral. Entre a porta de meu carro e a estreita calçada eu passava por sobre as folhas da edição de domingo do jornal “O Estado de São Paulo”, o Estadão, a fim de não me atolar no barro.

Quando, enfim, na entrada da cidade, já se conseguia passar, mesmo com as rodas de um lado do carro dentro da água, foi possível adquirir, em um dos supermercados da cidade um leite desnatado importado, de péssima qualidade.

E foi então que, no hospital, fiquei ao par de outras lendas e peripécias.

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