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Rousseau e o abismo entre um selvagem e um presidente

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A piedade é um princípio que nos é natural e nos é anterior ao uso da razão

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Dr. Leandro Rocha*

Rousseau, um dos autores da modernidade que mais causaram impacto nas reflexões sobre política, possui um conceito que talvez nos ajude a pensar o modo como nos relacionamos com os outros contemporaneamente, bem como, chamar a atenção para algumas características a respeito de quem colocamos como líder da nação. Me refiro aqui à noção  de “piedade”.

Nesse autor, a piedade é um princípio que nos é natural e nos é anterior ao uso da razão. Rousseau vê os homens de seu tempo e reflete sobre o que teria sido o ser humano em seu princípio, antes de a civilização o ter modificado, o ter degenerado. Nesse sentido, reflete sobre o ser humano em seu estado primitivo e teoriza a respeito de um princípio fundamental que é a repugnância diante do sofrimento de outro ser vivo. Isso seria a piedade. Não seria sentir pena ou algo do tipo, e sim encarar o sofrimento do outro ser vivo como se fosse um sofrimento seu, sem cálculo racional envolvido, interesses, ou qualquer tipo de noção de superioridade diante do outro.

Essa princípio, da piedade, já estaria presente naturalmente no homem selvagem, sem o apoio da cultura ou do sistema educacional. O homem selvagem, por natureza não seria egoísta, não teria interesse em causar mal aos demais, ou a querer se sobressair, a querer a estima e honras dos demais. Seria um ser que teria em vista a manutenção de sua vida sem que para isso fosse necessário causar mal ao outro ou se projetar como superior ao outro. E nessa condição, em caso de sofrimento de outro ser vivo, tenderia a reagir ao sofrimento de outro ser vivo como se fosse um sofrimento seu.

Desse homem selvagem, capaz de empatia, para um presidente que, diante da morte de incontáveis vítimas da covid, muitas que morreram sem oxigênio, a imitar em tom jocoso uma pessoa se afogando, sem ar, é uma barbaridade sem unidade de medida suficiente para indicar a pequenez moral da ação. Ou, no mesmo sentido, quando pessoas comemoram o falecimento precoce de uma criança apenas por ser neta de um adversário político, ou, ainda, quando, segundo reportagens do The Intercept Brasil, inclusive integrantes do Ministério Público Federal, zombam da morte da esposa de alguém que estava sendo processado,  temos aí mais um exemplo do abismo que separa o homem selvagem desse grupo que lidera, que processa sem provas e que aplaude esse afundar civilizatório.

Sem a inocência de retornarmos a um estado selvagem, salientando aqui as virtudes dos selvagens comparados aos exemplos mencionados de “cidadãos de bem”, com as deformidades morais que a nossa cultura moldou, é possível ao menos pensarmos em um sistema educacional que forme selvagens não das florestas, mas selvagens para habitarem as cidades, como é a indicação do próprio Rousseau.

Seria salutar e ganharíamos em termos de espécie se pudéssemos ter condições de estarmos abertos a um retorno de princípios pré-civilizatórios, se o caminho que a civilização percorreu apenas acentuou as nossas piores características diante das demais vidas.

Cito como a imagem do exemplo da piedade e do que temos de melhor enquanto seres humanos, os dois abraços dos ex-presidentes, Fernando Henrique Cardoso com Lula, em duas oportunidades igualmente limites, do ser humano diante da morte, quando do falecimento das respectivas esposas, Ruth Cardoso, em 2008, e de Marisa Letícia, em 2017. Independentemente de qualquer outra situação ou disputa partidária, é um sentir junto com, é empatia, é piedade, é a capacidade humana de reagir como se a dor fosse sua.

O que temos em ascensão hoje, no entanto, é justamente o oposto. É a potencialização da desigualdade entre os homens, é a potencialização do desenvolvimento da cultura civilizatória deixando de lado as melhores características dos seres humanos e focando no aprimoramento de nossas mazelas.

Atitudes truculentas para com os outros seres vivos, a incapacidade de empatia, de piedade, de sentir com o outro, tem sido cada vez mais expressa de modo sem vergonha nas redes sociais e também no Vale do Javari, nas minerações ilegais, nas comunidades e inclusive dentro de templos religiosos. Com registros de empresários milionários supostamente a propor fazer correr sangue nas ruas no caso do candidato que eles apoiam não ganhar a eleição, o que temos é uma necessidade urgente de repensarmos os rumos de nossa civilização e o que podemos cada um de nós fazer por isso.

O ser humano não precisa ser pensado como nascendo santo. Se ficarmos na perspectiva do selvagem, pré-racional, suas disposições naturais mais primárias se harmonizariam, segundo Rousseau, sem a necessidade de querer o mal do outro para viver e viver bem. Se formos para a perspectiva racional, a razão pura, sem influência de preferências meramente privadas, Kant esclarece de modo suficiente o caminho a partir do qual poderíamos chegar à paz perpétua inclusive! O que explica promover um modo de vida com foco no limbo entre o pré-racional e o uso da razão no melhor de sua capacidade?

É muita fake news, mentiras, crimes, rachadinhas, cheques suspeitos, candidaturas laranja, madeireiras ilegais, garimpo ilegal, grileiros, sonegação de imposto, orçamento secreto, tratores superfaturados, vacinas com sobrepreço, poços sem água, tráfico de influência, aumento meteórico de patrimônio de cunhado, mansões, Viagra pago com dinheiro público, próteses penianas via imposto, balas perdidas sem punição, milícias, esquadrões da morte, assassinatos de ambientalistas, de jornalistas, de índios e de pobres, com um poste geral da República. Esse é o caminho da civilização? É só isso o que resta ao Brasil de hoje? A tchutchuca do centrão?

*Dr. Leandro Rocha é professor na Universidade do Estado de Minas Gerais

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