segunda-feira, 29

de

abril

de

2024

ACESSE NO 

Os bebês de Auschwitz

Últimas Notícias

O extremo da maldade

- Ads -

Sempre fui uma leitora compulsiva, aquela que finaliza uma obra em poucos dias. No entanto, confesso que, além de adiar a leitura de Os bebês de Auschwitz, levei algumas semanas para concluí-la. Apesar de já saber que se tratava de uma narrativa que exigiria um preparo mental, emocional e histórico, ainda assim, a cada página lida, necessitei de uma pausa para assimilação e recuperação pois estava exposta à descrições que causam náuseas e envergonham o leitor por pertencer à mesma espécie de quem as praticou.

A escritora Wendy Holden elabora, a partir de pesquisas e entrevistas, um longo e minucioso relato de três mulheres que, além de resistir aos inóspitos campos de concentração nos quais foram brutalmente tratadas, conseguiram dar à luz nesse contexto cruento.

Priska, Rachel e Anka eram belas, jovens, bem-sucedidas e oriundas de famílias abastadas. Uma eslovaca, uma polonesa e uma checa que tinham em comum a descendência judaica o que, no ápice do domínio perverso nazista, era considerado um crime. Por isso, foram ceifadas de suas rotinas, desumanizadas e encarceradas em campos de concentração, onde foram submetidas a trabalhos forçados, torturas psicológicas e físicas, condições insalubres e regime alimentar insuficiente:

A fome virou uma tortura constante, e a luta para encontrar comida, uma missão diária. Muitos ficaram apáticos e deprimidos. O destino obrigara indivíduos, outrora orgulhosos, com lindas casas e uma vida próspera, a conviver em intimidade com desconhecidos adoentados. A única coisa que os unia era o sangue judaico. Forçados a respirar aquele ar denso, que fedia a sujeira de gente que não se lavava, o medo e a fome os reduziam a uma amargurada existência (HOLDEN, 2015, p.104).

Em meio à privação alimentar e à ameaça constante de morte – por enforcamento, tiro, espancamento ou câmera de gás – Priska, Rachel e Anka foram capazes, não apenas de driblar os médicos nazistas que as examinaram quando chegavam à Auschwitz e os quais obrigavam as gestantes a abortar, bem como conseguiram sobreviver às inúmeras adversidades ao longo do tempo que estiveram sob jugo dos antissemitas, como vemos: “Os judeus eram proibidos de nascer, as mulheres, de ter filhos. Fomos forçados a esconder a gravidez de sua mãe. Até os próprios judeus nos pediam para matá-los, o fruto de nosso útero, porque o inimigo ameaçava castigar a comunidade inteira” (HOLDEN, 2015, p.115).

À medida que avancei na leitura, fui me imiscuindo nas descrições e ficando mais próxima de exercer a empatia necessária para me imaginar estando desnutrida, desumanizada, privada de minha cultura, e de qualquer conforto e alegria, ao ponto de duelar por gotas de alimento, pois as mesmas poderiam garantir minha sobrevivência, mesmo que, para isso, tivesse que suportar maus-tratos:

Seguindo instintos animais e os ditames da sobrevivência, notaram que as outras prisioneiras, despertando de seu torpor, avançavam nas caldeiras de sopa assim que elas eram trazidas pelas companheiras. Havia discussão entre facções e grupos de diferentes nacionalidades, enquanto os Kapos, com porretes ou mangueiras, impingiam duros castigos a quem lambia as gotas que derramavam no chão ou brigava como chacais por migalhas. As mais famintas suportavam as pancadas, enfiando as mãos sujas na sopa em busca de alguma sustança. Naquela situação, em que qualquer coisa era vital para a sobrevivência, os antigos rituais de lavagem das mãos foram abandonados. Priska viu que a melhor parte era a concha que restava no fundo da caldeira, mas essa era a parte mais disputada, e ela precisava esperar a sua vez (HOLDEN, 2015, p.138).

Os que sobreviveram aos extremos da maldade tinham métodos para isso, como, por exemplo, Priska, que enganava a mente com lembranças prazerosas de sua vida pregressa, levando em consideração o conselho de seu marido, do qual foi apartada, mesmo que isso fosse muito desafiador:

Tibor lhe pedira que pensasse somente em coisas bonitas, mas o que havia para ver naquele terreno pantanoso e lúgubre, feito de argila amarelenta sem espaço para verde, cujo horizonte era uma cerca de arame farpado? O ar estagnado cheirava a morte, naquele campo que se estendia para lá de onde a vista alcançava. Bétulas balançavam sob o vasto céu, mas o sol era pálido demais para penetrar a permanente treva, e os pássaros haviam abandonado aquele sítio esquecido, deixando nada mais do que o silêncio atordoante. Onde estava o resto do mundo? Naquele complexo de destruição do espírito humano, os espectros grotescos a sua volta apresentavam o rosto cadavérico, com expressão catatônica. Transportados para o nada e reduzidos a uma existência inumana (ou inexistência), aqueles seres se tornaram figuras sombrias, meio loucas, meio mortas. Não havia a mínima chama de esperança em seus olhos, diante da inevitabilidade da morte. Os internos já estavam acostumados a acordar ao lado de cadáveres – fato que procuravam esconder para ficar com uma porção extra de comida (HOLDEN, 2015, p.144).

A narrativa é tão bem articulada que, mesmo uma pessoa como eu, que nunca passou fome, é capaz de sentir a extrema dor de quem está privado das necessidades básicas ao ponto de delirar de vontade de se alimentar e sonhar acordado com os pratos preferidos.

O leitor deve estar se perguntando como que, dentro de corpos inanimados e em meio a um ambiente extremamente sanguinário, cresceram bebês!? Sim, desafiando toda lógica e, mormente, todo o réprobo estratagema nazista, as três mulheres mencionadas conseguiram parir:

 [...] a criaturinha ali em seus braços sobrevivera à ocupação nazista, às atrocidades de Auschwitz, a um inverno rigoroso e a seis meses de violência, fome e trabalho árduo, numa Europa assolada pela guerra. Com aquele nascimento, desafiava os dois lados do conflito, na esperança de um futuro melhor (HOLDEN, 2015, p.201).

Aos infantes nascidos nos hediondos campos de concentração, os quais, felizmente, tiveram seus descendentes em desacato ao propósito de Hitler de exterminá-los, a humanidade deve a perpétua lembrança das atrocidades que seus parentes sofreram para que as mesmas jamais se repitam.

Os traumas dos sobreviventes muitas vezes impediram a propagação desse horripilante capítulo da História porque muitos acreditavam que o esquecimento absoluto seria a melhor estratégia para apaziguar a dor. No entanto, sabemos que é necessário falar sobre as malignidades na medida em que todos devem saber a respeito e formar uma egrégora de avessos a todo tipo de crença em superioridade étnica, cultural, profissional e de gênero, pois resultam em fanatismo, perseguição, domínio, retrocesso e perversidades.

(HOLDEN, Wendy. Os bebês de Auschwitz. São Paulo: Globo Livros, 2015).


- Ads -
Olá, gostaria de seguir o JMais no WhatsApp?
JMais no WhatsApp?