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abril

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O poeta que fingia

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Um tour pelas obras de Fernando Pessoa

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“Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Provavelmente você conhece esse verso de Fernando Pessoa, poeta português que viveu e produziu no início do século XX, mesmo que desconheça que a ele pertença, ou seja alheio à sua complexidade literária.

Aliás, a internet, não obstante toda sua funcionalidade positiva de acesso ao conhecimento e facilidade de comunicação, presta um desserviço aos poetas. Sim! Já vi frases absurdas, clichês bizarros serem atribuídos aos gênios da literatura, como Mario Quintana, Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, Gabriel García Márquez, e assim por diante. No entanto, a maioria das frases que encontramos de Fernando Pessoa no mundo virtual são realmente versos de seus avassaladores poemas.

Um exemplo é a máxima “Navegar é preciso, viver não é preciso”, que é um louvor, proferido pelos conterrâneos, aos feitos portugueses da época das navegações, invasões e colonizações. Fernando Pessoa, por sua vez, a eterniza transferindo-a para seu universo criativo:

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
Navegar é preciso; viver não é preciso”.

Quero para mim o espírito desta frase, transformada
A forma para a casar com o que eu sou: Viver não
É necessário; o que é necessário é criar.

Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande, ainda que para isso
Tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso
Tenha de a perder como minha.

Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho
Na essência anímica do meu sangue o propósito
Impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
Para a evolução da humanidade.

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.

Ele levou esses versos ao extremo, na medida em que criou, além de seus inúmeros poemas, cerca de setenta heterônimos, ou seja, poetas fictícios, cada qual com sua personalidade, vivências, estilos e obras publicadas. Por isso, até onde sabemos, não há comparativos na História Literária Ocidental.

Como forma de difundir as obras de Fernando Pessoa e ajudar aos leitores iniciantes, o escritor e professor brasileiro Álvaro Cardoso Gomes publicou O poeta que fingia. É uma narrativa que já no seu título evoca um verso desse autor, o qual, num poema metalinguístico, aborda a discussão da verossimilhança literária, isto é, o escritor poder escrever e sentir sobre diversos assuntos, mesmo que não os tenha vivido, e convencer o leitor da carga significativa dos mesmos.

O livro de Álvaro Cardoso Gomes é uma narrativa cativante, que pode ser acompanhada facilmente por diferentes tipos de leitores, e que nos fornece um panorama da produção desse ícone literário. Além disso, análogo ao escritor referenciado, cria um enredo original, no qual o menino João Fernando convive com Fernando Pessoa. Ambos se assemelham não apenas nos nomes, mas na aptidão pelas letras e pelos versos.

O garoto vai interagindo com o poeta e, aos poucos, conhecendo seus heterônimos. Alguns lhe causam estranheza e dúvidas. No entanto, Pessoa discorre sobre suas características e leciona sobre a arte da escritura, esclarecendo os subentendidos. Quando o menino lê Ode triunfal, de Álvaro de Campos, e sente-se nauseado pela atmosfera desordenada descrita, o autor alerta:

- Creio, salvo erro, naturalmente, que ele quer expressar os múltiplos aspectos da vida moderna, que é caótica, extremamente dinâmica. Para fazer isso, precisa utilizar-se de uma nova forma de expressão. Não seria lógico ele manifestar-se de modo comedido... Fernando Pessoa completou: - Quanto às coisas sem importância a que te referes, eu te diria, meu querido, que a poesia alberga qualquer coisa, tudo se engrandece e ganha beleza dentro de um poema. E isso serve tanto para os antigos deuses, a mulher amada, os bons sentimentos, quanto para “os instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar, engenhos, bocas, máquinas rotativas” que aparecem na “Ode triunfal” (GOMES, 2010, p.205).

E um dos aspectos mais instigantes do enredo é que João Fernando lê muito, aprende sobre poemas e sobre criação literária, e tem sua vida transformada pela leitura. Nada de fictício nessa premissa, pois acredito que todos os leitores literários passam por isso constantemente. Vale experimentar, mais uma vez, um processo de metamorfose e abertura para o novo com “O poeta que fingia”.

(GOMES, Álvaro Cardoso. O poeta que fingia. São Paulo: FTD, 2010).

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