Não há perspectiva de curto prazo à remoção de tais obstáculos corporativistas e ideológicos
Walter Marcos Knaesel Birkner*
No artigo anterior, intitulado O Enem e as pontas soltas – parte I, afirmei que as questões do referido Exame Nacional do Ensino Médio revelam duas pontas soltas entre si, quais sejam, os temas da Educação para com o Desenvolvimento. E o dizia com base na observada ausência de temas que permitiriam esse link estratégico ao desenvolvimento local-regional e nacional e ao futuro de nossos jovens. Isso só será possível com a remoção de obstáculos e o estímulo à introdução de temas e conceitos que induzam essa religação.
Neste segundo artigo sobre o tema, analiso o problema pela identificação do maior obstáculo à religação estratégica entre a Educação e o Desenvolvimento. Nessa sequência, pretendo concluir a análise em artigo subsequente, apresentando temas e conceitos que facilitarão essa religação. Primeiramente, vamos ao problema.
O maior obstáculo é um monstro de duas cabeças. Uma das cabeças é racionalmente orientada pelo corporativismo e a outra passionalmente conduzida pela ideologia. O corporativismo de setores representativos da Educação resiste porque professores temem perder carga horária e também resistem à interdisciplinaridade que os obriga a estabelecer pontes com outras áreas da ciência.
Representantes sindicais, além de intelectuais e parlamentares, mais em defesa dos primeiros do que dos professores e de um ensino de qualidade, insistem no chavão do “desmonte” da Educação. Têm ojeriza à educação técnica e profissionalizante e se arrepiam com um dos dois objetivos gerais da Lei de Diretrizes de Base (LDB), qual seja, a formação para o mundo do trabalho. A rigor, são contra qualquer ideia, política ou governo que identifiquem com o cheiro de enxofre do que denominam “neoliberalismo”.
E aqui o corporativismo se engata com a ideologia, seu aporte justificativo. Aqui, tudo que tenha a ver com formação para o mercado, trabalho, profissões, capital humano, empreendedorismo, inovação e desenvolvimento econômico é execrável. É incrível como coincide com a religiosa condenação ao interesse pelas coisas do mundo terreno e material, coisa da Idade Média, antes da reforma protestante.
Aliás, uma leitura de A ética protestante e o espírito do capitalismo, do sociólogo alemão Max Weber (1864-1920), mostra claramente o que essa gente culta odeia. Assim como as nações que os indivíduos constituem em sociedade, a vida como ela é se revela o produto de uma escolha na bifurcação da encruzilhada: ou com afinco a levas ou a deixas te levar. Te responsabilizas ou responsabilizas os outros.
Reconheça-se: têm sentido algumas das críticas feitas ao Novo Ensino Médio, aprovado durante o governo de Michel Temer e implantado de forma desorientada durante a pandemia. Escolas sem estrutura, professores sem treinamento, muito menos tempo e condições adequadas. Tudo e mais alguma coisa causou um stress danado, e lá se foi mais um precioso tempo perdido, sabendo que os filhos das elites não estudam em escola pública. Mas, se a vaca tem carrapato, não se sacrifica a vaca; matam-se os carrapatos.
O governo atual reagiu, aderiu ao pedido de uma revisão, apresentou nova proposta em discussão no Legislativo, a partir de um projeto cujo relator escolhido pelo Legislativo, no seu direito, é o deputado federal Mendonça Filho (União Brasil-PE). A intenção, apoiada pelo ministro da Educação, Camilo Santana, é de aperfeiçoamento, mas o foco continua em sintonia com o mercado de trabalho e o civismo, respaldados pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Só que os opositores do projeto não querem reforma alguma; querem a simples revogação do Novo Ensino Médio, assim como querem a revogação da própria BNCC. É que, com todas as suas insuficiências, o Novo Ensino Médio tem foco predominante na formação para o mundo do trabalho, está na BNCC, está na LDB, está em sintonia com o ensino médio dos países desenvolvidos. Subentende a preocupação com o fato de que o ensino técnico atinge 10¢ dos jovens do ensino médio no Brasil, enquanto é de 40%, às vezes mais de 50% nos países ricos.
E é aqui que aparece o corpo inteiro do monstro, espécie bíblica de Leviatã, só que do tipo hobbesiano. Ele se propõe a cuidar de tudo e tutelar a todos os professores do Brasil inteiro e cujas duas cabeças orientam os formuladores das questões do Enem e as selecionam: A Conferência Nacional da Educação (Conae). Constituída por dezenas de entidades representantes dos que concordam e dos que discordam de suas diretrizes, estabelece o que deve e o que não deve ser ensinado na Educação.
E pra entender o Enem e como toda essa roda gigante da Educação brasileira gira, é importante saber não apenas como age, mas o que diz o monstro de duas cabeças. Pois, aqui vão duas pérolas propositivas inerentes ao documento oficial dessa forte criatura, em nome da “formação para a cidadania e coletividade” e, devo acrescentar, pelo bem da Nação e garantia de bom futuro aos nossos jovens que, sabe-se lá por que outras razões querem sair do País:
(…) é necessário garantir que as reformas educacionais não cedam a pressões reducionistas de interesses privados e oriundas de um modelo que enxuga o papel do Estado, como as agendas neoliberais que cresceram nos últimos anos no campo educacional. Exemplos de políticas que passam por tal problemática são a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), (…) e a Reforma do Ensino Médio (…), que precisam de revogação”.
É isso mesmo: literalmente, os integrantes da Conae pedem a revogação da BNCC, na condição de guardiões da Educação nacional. Ah, e o leitor que se dedicar a uma leitura do documento de 179 páginas que separam o bem do mal, ainda constatará o aguerrido combate às “políticas educacionais ultraconservadoras”, isso mesmo, e, bom, como todo mundo já sabe, ao “agronegócio”, é só conferir através do link ao fim deste artigo.
Pois bem, sejamos realistas: não há perspectiva de curto prazo à remoção de tais obstáculos corporativistas e ideológicos. Sua fortaleza é bem maior que os pressupostos politicamente vagos e idealizados que aqui apresento. E seu discurso é articulado, não tem ponta solta, diferente da sociedade civil dispersa de indivíduos tentando cuidar de suas vidas. Deveríamos aprender mais com eles, não pra ser como eles, nem pensar como eles. Mas, pra sabermos que a coisa pública exige eterna vigilância.
O documento da Conae que recomenda as diretrizes ao período 2024-2034 está disponível aqui.