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Na vila de San Michelle

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Situava-se nos arredores de Verona a Vila de San Michelle Archangelo. Um pequeno povoado que se formara em torno da Igreja de seu Arcanjo protetor, estendia-se pela planura esverdeada ao longo da bacia do rio Adige. Vila rodeada de prósperas propriedades rurais onde tudo se plantava e em abundância se colhia. Vila rodeada de verdes e suculentas pastagens onde criavam o melhor gado. E do leite ordenhado de viçosas vacas os aldeões preparavam a manteiga e os famosos queijos da região.

Nos arredores da Vila de San Michelle Archangelo viviam os Caillotto em sua pequena e bela propriedade cercada de frondosas árvores frutíferas e dos mais belos pinus e ciprestes da Itália.

A casa rústica fora construída por antepassados seus, com pedras trazidas do sopé das montanhas que não se situavam muito longe. Com cobertura apropriada para receber todas as intempéries. Pela altitude local, embora as estações frias fossem enregelantes, as nevascas não eram frequentes.

A propriedade não era grande. Mas o que nela criavam e cultivavam era suficiente para o sustento da grande família. Os parreirais estendiam-se numa pequena elevação do terreno que recebia a intensa luminosidade solar de todas as manhãs, não importava qual fosse a estação do ano. Uma pequena vinícola onde finos vinhos eram produzidos com escolhidas uvas colhidas com esmero em cada safra. A família cultivava algumas variedades de boa cepa, como Negrara, Corvina, Bardolino e Valpoliccella.

O generoso pasto da pequena gleba era suficiente para alimentar, com sofreguidão, belos exemplares de gado bovino e ovino. Porcos tinham os seus chiqueiros cobertos e o grande mangueirão ao lado para deliciarem-se de acordo com a sua natureza. O que dava intenso trabalho aos aldeões para mantê-los em um mínimo de higiene adequada para aqueles meados do século XIX. Aviários repletos de poleiros abrigavam galos e galinhas à noite. Sem faltar os especiais ninhos para as que estavam em fase de choco. Quase faziam fila para a tantos ovos chocar.

O velho Bengiamino, cabelos e barbas da cor de neve, com rugas que formavam crateras em seu rosto, sentado em sua cadeira de balanço contava já para os seus bisnetos histórias do tempo em que se colocara à frente de um brioso pelotão do exército do Grão Duque Marcelino di Scarpa, quando Napoleão, com suas hordas, —para ele não passavam de hordas de bandoleiros sanguinários — acometeram com toda a fúria a região em que, sossegadamente, viviam.

Contava-lhes que o exército de Napoleão apossou-se de toda a pastagem em torno do vale do Adige onde deixou uma legião de cavalos famintos a pastar. Cavalos famintos, necessitados de um bom e revigorante pasto verde. Cavalos cansados com os quais o exército francês desceu as nevadas e agrestes montanhas alpinas.

Não contou, ou nem se lembrava mais, que, por muitos anos aquela maravilhosa região ficou sob os domínios de Napoleão, coroado rei da Itália. Relatava seus feitos heroicos, as façanhas suas e de seus pelotões. Dos esconderijos nas grotas de onde saíam à noite para subjugar, de improviso, soldados inimigos. Dos túneis que cavaram sob o solo. Das aberturas que cobriam com feno para ludibriar o exército invasor. Das caminhadas noturnas das noites sem lua, movidos apenas pelas estrelas e pelo conhecimento profundo de todos os meandros para deixar os comandados por Napoleão em constante estado de alerta e cansaço.

Ao mesmo tempo balbuciava, com respeito, o nome do famoso corso. Pelas ímpares e majestosas estratégias concebidas, com antecipação quase miraculosa, para, pelos mais ínvios caminhos chegar até onde chegou. Mas lembrou também aos pequeninos dos dois grandes erros do até então invencível soldado. O branco paredão do General Inverno na Rússia e depois o seu Watterloo, o seu fim, na Bélgica.

Este Bisnonno Bengiamino, que parecia mais dormitar em sua cadeira de balanço, ao sol dos verões de Verona que inundava todo o avarandado da casa de pedra, que viu o mundo já nos Settecento¹ embevecia tanto a pequena Thereza como seus irmãos Joacchino e Stella que não saíam debaixo de seus pés esperando sempre que novas histórias ele tivesse para lhes contar.

A mais ávida para a tudo saber, a que mais arregalava seus olhos azuis da cor do céu para bem ouvir e melhor captar as histórias do bisavô era a irrequieta Thereza. O que mais ela queria saber era quem e como cuidavam dos soldados feridos. Onde havia uma casa de saúde e se sofriam muito.

Thereza nascera em 1864 e já aos 6 anos de idade sofria com as dores e as agruras que, pensava ela, deveriam ter passado os pobres soldados longe de suas mães que não estavam lá para, em suas feridas, passar as mãos.

E lá no íntimo de seu ser a pequena Thereza jurou para si mesma e em voz alta falou para o velho Bengiamino:

— Quando eu for grande vou fazer um hospital para ninguém nunca mais sofrer quando tiver guerra e outras doenças.

Mas, como era coisa de criança curiosa, as falas de Thereza perderam-se no tempo. Para os outros. Não para ela.

A vida para a família Caillotto continuava com as mesmas lides campesinas. Arar a terra. Cultivar hortaliças e demais produtos agrários. Criar seus animais. E deles a tirar o sustento imediato. A vender em Verona quase tudo o que produziam.

Das ovelhas tiravam a lã e teciam os mais confortáveis agasalhos que os livravam do frio do inverno. Mas teciam sem parar e muitos rolos de tecidos de pura lã levavam para vender em Verona.

Nas amoreiras que cultivavam cuidavam para que sempre proliferasse o Bombyx mori, o Bicho da seda. E em seus teares produziam as mais belas sedas. Confeccionavam lenços e blusas e saias com que se vestiam em todos os verões. Tecidos de seda que vendiam nas aldeias vizinhas e no mercado da grande cidade também.

E assim Thereza, Gioachino e Stella cresceram. A ver o trabalho dos seus. A ajudar no trabalho dos seus.

Todos os sábados Thereza levava um carreto, puxado por um esbelto cavalo, carregado com toda a produção da semana até a cidade de Verona. Com sua espontaneidade, na feira que ficava na Praça Bra, ao lado da Grande Arena de Verona, logo vendia todos os seus produtos.

  Depois olhava para a notinha que seu pai lhe dava e procurava outros produtos e materiais necessários em seu dia a dia.

Às vezes detinha-se em frene à Igreja de San Michelle Archangello para fazer suas orações, entre elas o indefectível responso de San Antonio —porque objetos perdidos precisavam ser encontrados.

Quase sempre seus irmãos iam com ela. Aconteceu que, bem no dia em que os dois menores não a acompanharam pois não poderiam faltar na aula de catequese da aldeia, uma das rodas do carreto quebrou. Justamente quando quase se aproximava da grande porta, junto às muralhas que rodeavam a cidade. Vendera seus produtos e o carreto estava carregado de pesados utensílios para a lavoura. O desespero tomou conta de Thereza. Não havia como fazer o conserto sozinha.

Resolveu entrar na igreja. Na igreja de San Michelle Archangello. Que ficava quase junto da grande porta. Em suas preces chorava tanto que o sacerdote, que se encontrava nos fundos da sacristia, veio até a nave para ver o que estava acontecendo.

Aos prantos ela lhe mostrou a roda quebrada de seu carreto. Onde pedir socorro àquela hora de um sábado que quase findava? Só se deixasse o carreto ali no pátio da igreja e na segunda-feira seria providenciado o conserto.

— Sim, reverendo padre, agradeço-lhe muito. Mas e eu? Como regressarei para minha casa? Meus pais ficarão atordoados com a minha demora em retornar. E não temos outra condução para que eles possam vir atrás de mim. Logo escurecerá e não poderei andar a pé, sozinha, por estas vias solitárias…

E os soluços voltaram. Com ímpeto ainda maior.

Foi então que o velho pároco lembrou-se de ter dado abrigo, na noite anterior, a um jovem marinheiro, que viera de Veneza e não tinha onde pernoitar. Estava fazendo um curso de línguas latinas, justamente num colégio que ficava ao lado da Igreja. Viera com seu cavalo que estava recolhido no outro lado da construção.

— Vou lhe dar uma sugestão senhorinha Thereza. O seu carreto fica aqui. Desencilhamos o seu cavalo. A senhorita vai cavalgando. E o moço pode lhe acompanhar para que não vá sozinha. É um jovem de muito respeito. Conheço-o bem e não só a ele como a toda a sua família.

— Senhor Padre! O senhor propõe que eu vá sozinha com um desconhecido a estas horas até a minha casa? Que fica bem a uns quatro quilômetros daqui da Igreja? Mas nunca! Como o senhor pensa que meus pais irão me receber em casa? Amaldiçoando-me.

Parou um pouco o seu breve desabafo, pensou um pouco e falou mais calma:

— Reverendo, desculpe-me pelo meu nervosismo. Mas pensando melhor… O senhor não tem um carreto para me emprestar? O seu amigo marinheiro poderia nos ajudar. Encilhamos o nosso cavalo no seu carreto, mudamos as compras que carrego também e na segunda-feira eu ou meu pai faremos a devolução e consertaremos, com calma, esta roda sem graça que tinha que quebrar justo hoje em que vim sozinha.

Nisto aparece um jovem marinheiro, que todo garboso se apresenta para Thereza. Foi um susto, um frenesi que perpassou por ambos. Olhos grudaram-se uns nos outros. Parecia que faíscas cruzaram os céus naquela hora. Quando o velho pároco tentou fazer as apresentações encontrou dois seres emudecidos, estáticos a mirarem-se, como se magnetizados estivessem soldados ao solo.

Ambos tremiam e mal conseguiam balbuciar seus nomes e um tosco “Muito prazer”.

Marcelino era muito jovem ainda. Fizera um curso para trabalhar na marinha mercante. Por enquanto trabalhava apenas em embarcações pequenas que faziam curtos percursos ao longo da Laguna de Veneza. Trajava uma elegante fatiota. Camisa de seda de mangas bufantes. O que mais chamou a atenção de Thereza foi a argola que trazia preza em sua orelha esquerda. Um grande aro de ouro. Pelo que sabia era um adereço usado pelos piratas que singravam os mares do mundo. Sentiu uma certa apreensão. Mas o que faria um pirata em uma igreja ao lado de um religioso?

—Deve ser coisas dos venezianos que vivem ao lado do mar. —Imaginou–se já a vagar pelo mundo ao lado de um pirata… Depois riu das bobagens que passavam por sua mente.

A pedido do pároco e a contragosto foi o jovem providenciar o velho carreto da paróquia. Retornou com ele e com mais um cavalo. Thereza pediu ao religioso que fosse junto para evitar dissabores. O jovem iria cavalgando ao lado e então retornariam os dois para a igreja, mesmo que noite já se fizesse.

E foi assim que Thereza conheceu o seu primeiro amor.

¹ Settecento. Século XVIII.

*Trecho inicial de Nas Fímbrias do Tempo. Para adquirir a obra entre em contato com a autora clicando aqui

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