Escola a qual dá nome completou 50 anos nesta semana
Imagens da vida reiteradamente retornam à nossa mente. Não saberia dizer quais as mais intensas e nem quais as que com maior frequência deslizam dentro destas intrincadas paisagens que, amiúde, vislumbramos.
Seriam as da infância? Ou de uma mescla por onde passeamos naquelas horas crepusculares entre o fechar dos olhos e o adormecer?
Hoje eu me vi criança ainda, em um verão antigo, retornando ao internato de nosso Sagrado Colégio.
Hoje eu me vi criança ainda, já querendo adolescente ser, quase entrando nos meus onze anos, feliz por estar dando os primeiros passos no curso então de Fundamental denominado, o curso que sucedia aos quatro anos do Elementar e ao qual só se chegava após um concorrido e difícil exame de admissão.
E encontro uma nova figurante em nossas vidas. Atrás de seus óculos redondos de grandes aros escuros. Um rosto quase escondido ainda por uma balaclava branca e um negro véu.
Uma nova figurante que, junto com Irmã Maristella Banach, coordenaria, daquele ano em diante, as atividades das internas. Lá se encontrava ela instalada já atrás de sua escrivaninha, a mesa que era seu púlpito, de onde nos observava em silêncio.
Quando mais jovem ela já estivera dando suas tintas por aqui, mas a congregação convocara-a para outras atividades nos pagos do sul, em Marau, no Rio Grande, onde por alguns anos ficou.
Era natural de Saint Gallen, Suíça e filha dos mesmos pais de nossa Madre Maria Albertina Bischoff. Não pareciam irmãs. Madre Maria Albertina mais cheinha de corpo, de faces rosadas, rechonchudas e sempre sorridente. E a irmã dela, que agora eu estava a conhecer, era muito magra, de anguloso rosto, sempre séria e de facies ranzinza.
Mais tarde eu descobri que era apenas a sua face. Porque o seu coração era imenso, como imensas eram a sua sabedoria, a sua cultura e as histórias que trazia em seu bojo para nos contar.
A esse tempo apenas uma professora ministrava todas as matérias para uma turma do Curso Fundamental. E a nossa mestra do primeiro ano também era ela, a nova figurante do Sagrado Colégio com quem iríamos nos encontrar, dali por diante, em todas as horas do dia e em todos os dias da semana.
Que ninguém sequer ousasse pensar em fazer algo não permitido pelas leis que regiam o internato, mesmo nos breves instantes em que de nossa vetusta sala de estudos ela se ausentava. Locomovia-se como um pássaro que apenas adejava sem o ruflar das asas e quando a imaginávamos distante já lá estava ela, como imóvel estátua, nos fundos da sala. Lá estava ela, com seu inefável sorriso de Mona Lisa.
Não andava. Flanava pelos corredores por onde sentíamos apenas o passar de um vento castanho-escuro, a cor de suas vestes. Sempre abarcando sob seus longos braços pilhas de livros e cadernos.
Ministrava suas aulas com extrema habilidade, como se fosse uma atriz em um palco desempenhando o mais importante ato de sua vida. E era incrível o seu conhecimento da história do mundo, da geografia do mundo, da latina língua, da francesa e da inglesa. Conduzia-nos ainda para novos mundos da Matemática, da Religião e da nossa Portuguesa Língua.
Dormia em nosso dormitório em uma cela separada do resto apenas por um simples tabique de madeira. De onde eu a via sair, em plena noite, por muitas e muitas vezes, para atender a algum gemido de dor, algum choro convulso de saudade. Porque eram essas primeiras horas da escuridão da noite as horas da saudade da casa que longe deixáramos.
E outras tantas vezes eu a vi sair no decorrer das madrugadas, apressada, ainda acabando de colocar o véu em sua cabeça, para cumprir seu religioso dever na capela, o religioso dever das orações das horas canônicas.
Ela, esta nova figurante veio transformar a vida de muitas alunas, deixando sua marca indelével. Espalhou entre nós suas sementes de humildade e sabedoria.
Proveniente de abastada família dos Alpes nevados dedicou sua vida às missões franciscanas. Em sua breve passagem pela Inglaterra lecionou inglês para os ingleses. E aqui, Língua Portuguesa aos brasileiros.
Em um triste dia ela me disse adeus aqui neste mesmo Sagrado Colégio onde passou suas últimas horas.
As últimas horas de uma vida de amor ao próximo em uma clausura onde então eu tive permissão para entrar. Para cuidar dela, para tentar amenizar o sofrimento de seu corpo que já se encontrava em quase falência total.
E sua alma, ali, numa última tentativa de extravasar pelos límpidos olhos o algo que ainda restara para nos dizer.
E ela se foi como um pássaro que apenas adejava, sem fazer barulho, sem ruflar de asas…
Ela se foi. O corpo dela se foi.
Seu espírito inquebrantável entre nós persiste e continua a nos inspirar para o bom e para o belo.
Ela, a nova figurante de minha vida-criança, de minha vida-adolescente tem seu nome perpetuado em uma escola na esquina da rua onde moro.
Ela, Irmã Maria Felícitas Bischoff.