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Traumatizados ao perderem Enzo para o mar esta nova punhalada em seus corações foi algo muito profundo

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Enquanto o barco a vapor singrava as turbulentas águas do Atlântico Sul, em uma noite de tempestade, Thereza começou a sentir fortes contrações em seu ventre.

— Não— pensou—, não pode ser. Ainda não está na época de meu bebê nascer. Não está no tempo, não está na hora. Faltam ainda dois meses para a data prevista.

Na turbulenta e escura madrugada, enquanto as ondas varriam as dependências do navio em todas as direções, enquanto marujos desesperados tentavam controlar a direção, o leme, nascia, prematuramente, o segundo filho de Thereza e Marcelino. Sem pulmões maduros para levar oxigênio aos demais órgãos vitais, sem um coração potente para aguentar estes primeiros minutos de luta, sucumbiu nos braços da mãe o pequeno ser que ela ainda, chorando, batizou com o nome de Francisco, santo de Assisi.

Cesco, como seria chamado pelos seus, foi fazer companhia ao seu irmãozinho nas profundezas da solidão do mar. Foi o pensamento que pela mente de Thereza passou. Se tivesse se jogado nas águas turbulentas, no momento do desespero, não estaria passando agora por mais este infortúnio. Teria sido uma tragédia só…

Seu grito emergiu do fundo mais fundo de seu ser, atravessou a intrepidez das águas, ecoou pelo oceano e atingiu as estrelas. Inundada suas faces de lágrimas que não cessavam de jorrar. Mais águas de seus olhos escorriam que as enviadas pelos céus ou as jogadas sobre ela, violentamente, pelo mar revolto.

Seus soluços ecoaram pelo convés inteiro, pelo escuro porão, pelos seres todos do fundo do mar e pelas sereias que se debruçaram na amurada. Sereias a afagar seus cabelos, sereias benfazejas a consolá-la.

O navio continuou singrando as águas do Atlântico por muitos dias ainda até aportar nas costas ao sul do continente americano.

A chegada em Montevidéu parecia dar mais alento a Thereza. Marcelino logo procurou a Companhia de Navegação do Rio da Prata. Apresentou seus documentos. Já no dia seguinte começaria a cruzar o grande rio que é mar, que é prata.

Mamma Angela sempre ao lado da filha incentivando-a a alimentar-se melhor, a ter fé, a pedir ajuda ao santo de Pádua, ao santo de Assis. O clima das costas uruguaias e a felicidade de Marcelino em fazer o que melhor sabia e o que mais amava na vida deram novo alento a Thereza. Até já tecia planos em montar uma trattoria. Tinha certeza que daria certo. Sua mamma com suas massas inigualáveis faria sucesso. Mas para isto precisavam de mais algum tempo. Aguardar que os ganhos de Marcelino fossem suficientes para darem início a esta empreitada.

Certa manhã o aroma do café e do leite mal chegaram ao olfato de Thereza. Saiu correndo em busca de ar fresco. Nauseada ao extremo nada comeu. Mamma Angela providenciou algumas ervas para amenizar o enjoo. Atribuiu ao vinho que Marcelino trouxera para o jantar da véspera a fim de comemorarem o primeiro salário recebido na América.

Como em todas as manhãs a cena se repetia, começaram as preocupações. Os ciclos menstruais, embora de forma desordenada, continuavam.

Precisava consultar um médico. Saber o que estava ocorrendo era imperioso.

— Senhor Marcelino —explicou-lhe o médico. Sua esposa está grávida. Meus parabéns! Ela precisa agora é de repouso até que este sangramento cesse. Ainda bem que ela não tem cólicas no baixo ventre, senão já poderíamos pensar que um aborto estivesse a caminho. Vou prescrever uns bálsamos e uns fortificantes. Mas que ela volte a se alimentar bem. Muito peixe, frutas e verduras.

Felizes retornaram os dois a dar a boa nova a mamma Angela. Logo a alegria de uma criança encheria aquele lar.

Quando o pequeno Bengiamino fez dois anos chegou outro menino que recebeu na pia batismal o nome do avô. Luigi era robusto e risonho. Parecia a criança mais saudável do mundo. Um menino alegre que dormia feliz e quando acordado estava sempre de olhos esbugalhados e a sorrir o tempo todo.

— Agora temos dois anjinhos em casa! —vibrava mamma Angela.

Os irmãos de Thereza continuamente enviavam cartas contando das belezas da cidade em que moravam no sul do Brasil. O clima era quase igual ao de Verona. Muito frio no inverno com temperaturas até abaixo de zero e um verão ameno onde se podia viver bem. Diferente dos compatriotas que sofriam com o abrasador calor do Rio de Janeiro.

Marcelino progredia na marinha mercante do Prata. Subira de posto. Estava em ascensão. Parecia que, enfim, a vida lhes sorria. Com dois filhos pequenos a ideia da trattoria desvaneceu-se por completo. Às vezes ele permanecia no mar por vários dias. Uma tarde retornou meio mareado. Riram dele, pois um marinheiro de tantas viagens não poderia sentir-se mal em um barco a navegar.

Mas o mal que o acometia era mais grave. A febre logo tomava conta de seu organismo. A dor de cabeça tornou-se insuportável.

— O senhor, por acaso, esteve em contato com algum membro da tripulação de um cargueiro australiano que aportou aqui, recentemente, vindo da África do Sul? — Perguntou-lhe um preocupado médico que o atendeu no hospital.

— Sim, algumas mercadorias foram transferidas para o nosso barco, que por ser de menor cabotagem faz o percurso até para perto do delta do Paraná.

— Então o diagnóstico fecha. Toda a tripulação daquele cargueiro está em quarentena. Muitos já se achavam acometidos de febre tifoide quando aqui chegaram.

— Meu Deus! E agora? Já devo ter contaminado meus filhos, minha mulher, minha sogra!

— Calma, capitão Marcelino! O senhor ficará internado agora aqui até a febre desaparecer. O que poderá demorar alguns dias. Irei até a sua casa e examinarei todos os seus familiares. Também vou alertá-los para que não entrem em contato com ninguém. Precisamos evitar que esta febre se alastre pela cidade inteira.

Realmente toda a família fora contaminada. Passaram maus pedaços. Thereza, Angela e Bengiamino não precisaram ficar internados. O pequeno Luigi, sim. Acometido de uma febre altíssima que o levou a ter várias crises convulsivas seguidas. Em uma dessas crises a parada respiratória foi extremamente longa levando a uma demorada parada cardíaca. O cérebro fora afetado pela prolongada anóxia associada à toxemia causada pelo micro-organismo responsável pela febre tifoide. O menino não sobreviveu.

Traumatizados ao perderem Enzo para o mar esta nova punhalada em seus corações foi algo muito profundo. Thereza passava as noites em claro a chorar. Sentada na soleira da porta da casa passava horas como se esperasse um mensageiro do Alto a lhe trazer de volta o seu lindo e sorridente Luigi.

O passar dos dias não amenizava a dor que corroía suas entranhas. Mas Thereza precisava demonstrar a força que sempre teve e sufocava o sofrimento. Sorria para o pequeno Bengiamino. Envolvia-o com ternuras e afagos. Em tudo o que fazia precisava tê-lo rente a seu lado.

A casa em que moravam situava-se bem próximo a um regato de límpidas águas, rodeado de pedras. Ao lado o burburinho era sempre intenso. Mulheres a tagarelar e a cantar.

Era o local escolhido para se lavar a roupa. Era o local em que Thereza também lavava as suas. Era um sábado ensolarado. Enquanto mamma Angela arrumava a casa e preparava as massas para o almoço de domingo, Thereza em sua tina esfregava toalhas, ensaboava lençóis. Bengiamino brincava a seus pés.

O varal estendia-se em toda a extensão ao longo do terreno. Em uma das mãos o cesto cheio de roupa molhada, apoiado em sua cintura, na outra o seu sorridente menino. Envolveu-se a estender, com todo o cuidado, peça por peça, bem esticadas e a prendê-las com os grampinhos.

Alguns garotos, não muito longe, descobriram um enxame de vespas no tronco de uma árvore. Com seus estilingues começaram a atirar pedrinhas sobre ele. Os insetos alvoroçados saíram a voejar em círculos e num zumbido estridente avançaram em quem encontrassem. Thereza, envolta a estender suas peças de roupa no varal não percebeu de imediato. O alvoroço das mulheres e crianças a caminharem apressadamente em direção ao córrego fê-la ver o que ocorria. Somente ao estender as mãos para levar seu menino com ela percebeu que ele ali não mais se encontrava. Viu-o já próximo ao córrego a correr em alta velocidade. Foi como se o zumbido das vespas e mais o alarido de todas aquelas pessoas tivessem-no aturdido, fazendo-o correr como elas em direção à água.

Quando Thereza chegou perto Bengiamino já havia afundado no riacho. Caíra bem num daqueles buracos traiçoeiros encobertos pelo plácido líquido a correr. Jogou-se atrás. Não conseguiu trazê-lo à superfície. Homens que passavam ao largo vieram em socorro. Depois de horas o inerte corpo de Bengiamino foi encontrado em local distante.

Marcelino soube do ocorrido somente à noite, quando o cargueiro em que viajava ancorou no porto. Seu desespero era do tamanho do mundo. Temia perder Thereza. Não sabia como consolá-la. Não havia como consolar-se.

Mamma Angela também se desesperava. Já não encontrava mais palavras para amenizar tanta dor. Marcelino solicitou dispensa de seu trabalho por alguns dias. Precisava ficar em casa. Temia que aquela angústia fosse o início de infortúnios intermináveis.

Algumas semanas mais tarde ao retornar do mar chega em casa assusta-se ao ver na sala os baús que trouxeram da Itália já quase lotados com os pertences da família.

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