Será que essa ação do STF realmente protege a democracia?
Manuela Pozza Ellwanger*
Jorge Amaro Bastos Alves**
A suspensão da plataforma X (anteriormente Twitter) em setembro de 2024, ordenada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), levantou intensos debates sobre liberdade de expressão, controle da desinformação e o papel das big techs no Brasil. A medida foi o ponto culminante de um embate entre o tribunal e a rede social, que, segundo o STF, vinha desobedecendo ordens judiciais e facilitando a disseminação de fake news. Mas, será que essa ação do STF realmente protege a democracia ou camufla uma tentativa de controlar o debate público?
Desde que Elon Musk adquiriu o X em 2022, a plataforma passou por diversas transformações, incluindo uma postura mais permissiva em relação à moderação de conteúdo, em nome da liberdade de expressão. Para Musk, é essencial que as plataformas digitais limitem sua intervenção sobre o que é dito, permitindo que as vozes dos usuários prevaleçam. Contudo, essa abordagem mais aberta trouxe consigo o escrutínio de governos e tribunais, como no Brasil, que acusam o X de facilitar a propagação de desinformação e discursos de ódio.
Para muitos, essa interferência foi vista como um ato de censura e um atentado à liberdade de expressão, já que o X é uma das principais plataformas utilizadas por chefes de Estado, jornalistas e formadores de opinião ao redor do mundo. Uma pesquisa do Pew Research Center dos EUA, realizada em março de 2024 nos EUA, mostrou que 59% dos usuários do X recorrem à plataforma para se manterem atualizados sobre política, em comparação com apenas 36% dos usuários do TikTok e 26% dos usuários do Facebook e Instagram. Isso reforça o papel central que o X desempenha no debate político e nas discussões públicas, o que torna ainda mais significativa a decisão de bloqueá-lo no Brasil.
No entanto, é preciso perguntar: onde traçamos a linha entre proteger a democracia e sufocar o debate livre? Imagine que o X é como uma praça pública digital, onde milhões de pessoas se reúnem diariamente para discutir política, compartilhar ideias e debater questões fundamentais para a sociedade. Quando um tribunal decide quem pode ou não falar nessa praça, quem pode garantir que a próxima decisão não vá além, silenciando não só os extremistas, mas também aqueles que questionam o status quo?
Se usarmos outra analogia: pense em uma biblioteca onde há livros de todos os tipos, desde os mais populares até os mais controversos. Agora imagine que um bibliotecário, investido de autoridade, decide retirar das prateleiras os livros que ele considera “perigosos” ou “desinformativos”. Não demoraria para que outros tipos de livros também fossem removidos, à medida que o conceito de “perigoso” fosse se expandindo. Hoje, são os livros de política; amanhã, poderiam ser os de ficção científica, ou até mesmo os livros de receitas que promovem dietas “não recomendadas”. O que começa como um controle com boas intenções pode facilmente se tornar censura, limitando o acesso a informações e, mais importante, o direito de discordar.
Esse tipo de controle, aplicado ao mundo digital, abre precedentes perigosos. Quem decide o que é verdade ou desinformação? Ao permitir que um tribunal, formado por um grupo restrito de indivíduos, determine o que pode ou não ser dito em plataformas públicas, corremos o risco de reduzir a pluralidade de ideias e favorecer apenas as narrativas que agradam ao poder vigente.
As autoridades justificaram o bloqueio da plataforma alegando que teorias conspiratórias disseminadas no X poderiam incitar violência e desestabilizar a ordem democrática. Mas, ao invés de promover um debate aberto e transparente, o caminho escolhido foi o da censura. A questão é: quem garante que a remoção de certos conteúdos hoje não evolua para um controle ainda mais rígido amanhã, afetando todos os usuários, independentemente de suas opiniões?
Como defendeu o filósofo e economista John Stuart Mill (1806 – 1873), em seu livro Sobre a Liberdade publicado em 1859, mesmo as ideias falsas ou repugnantes têm um papel importante no desenvolvimento de uma sociedade saudável. A censura, segundo ele, impede o confronto de ideias e suprime o processo de evolução das verdades sociais. Para Mill, a verdade surge do embate entre visões divergentes, e qualquer tentativa de calar uma dessas visões é, em última instância, um obstáculo à própria busca pela verdade. Seguindo essa linha de pensamento, a decisão do STF, embora motivada pela proteção da democracia, pode ter o efeito contrário, restringindo a liberdade de expressão e sufocando o debate necessário para uma sociedade livre.
A suspensão do X no Brasil não deve ser vista apenas como uma medida técnica para conter desinformação, mas como um precedente perigoso para a liberdade de expressão. Ao interferir diretamente no que pode ou não ser dito em uma plataforma global, o STF ultrapassa os limites do que uma democracia deve permitir. Não se trata apenas de proteger a ordem; trata-se de garantir que o debate, por mais desconfortável que possa ser, continue existindo. Afinal, se começarmos a definir o que pode ou não ser dito com base em interpretações subjetivas, quem nos protegerá do próximo passo em direção a um silêncio imposto?
*Manuela Pozza Ellwanger é advogada