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abril

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As contradições da guerra na Ucrânia

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Não confunda a comédia pessoal da própria existência com a história universal

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Dr. Leandro Rocha*

A guerra da Rússia na Ucrânia, condenável como todas as guerras, curiosamente parece estar se revestindo de uma perspectiva para além de um dualismo simplório entre os “mocinhos” e os “bandidos”. Grande parte de nossa população, há poucas semanas, nem sabia que a Rússia fazia fronteira com a Ucrânia. Hoje temos na mídia e nas salas de aula, bem como nos botecos e no zap, “especialistas” no conflito. Sem essa pretensão, gostaria de aproveitar esse espaço para chamar a atenção para alguns fatos, relativizando um maniqueísmo fácil, e concluir, propondo refletir sobre o que nos faz nos unirmos em uma sociedade, bem como, nos responsabilizarmos pelas decisões.

É fato que vários dos países, como os Estados Unidos, que estão condenando a invasão da Rússia a um país soberano, já invadiram e invadem constantemente outros países. Uns podem e outros não? A rigor, nenhum poderia, deveríamos prezar pela autonomia entre as nações, mas vamos lá. Também é fato que nesses movimentos, se arma a população civil, cria-se milícias, que, após o fim da guerra, continuam existindo e fazendo a roda girar, como é o caso de terroristas que os EUA caçaram e que, anteriormente, foram treinados e equipados pelos EUA. Nesse momento mesmo vários países estão repassando bilhões em armas para a Ucrânia.

Mas se dirá que o motivo é nobre, afinal, o presidente da Ucrânia está convocando os civis a lutarem mesmo sem armas, colocando fogo em uma garrafa de gasolina ou de vodka e jogando nos tanques. E a mídia, a ONU e a OTAN divulgam a morte de civis no confronto. Em um contexto no qual o presidente da Ucrânia se esconde atrás dos civis e os incentiva a enfrentarem de peito aberto o exército inimigo, estão morrendo civis, sim. Toda a morte é lamentável, claro! Mas os números não estão sendo os números de um poder bélico como o da Rússia, que é desproporcional, se realmente estivesse dizimando a Ucrânia a qualquer custo, mesmo ao custo da vida de civis em qualquer contexto. Será mesmo que estamos tendo informações precisas? Análises minimamente imparciais?

Outro fato: os EUA e a Europa começam a confiscar bens de magnatas russos. Bem, para além da dignidade ou não das configurações em nossa organização econômica que possibilitam a existência de magnatas, será o confisco uma ação sustentável se fosse tomado como regra para qualquer guerra? As regras deveriam se aplicar a qualquer país que invada outro? Com isso se consegue algum impacto na guerra? O motivo é nobre, ou há outros motivos por trás?

Há relatos em jornais internacionais e nacionais de profissionais negros, que estavam trabalhando e vivendo na Ucrânia, bem como de estudantes, negros, que estavam sendo impedidos de entrarem nos trens para fugirem da guerra. Crianças negras sendo retiradas dos trens para darem lugar para os brancos! Mesmo que se diga que tal tratamento desigual para fugir da guerra não se dê pelo preconceito com as minorias e sim para priorizar a fuga dos ucranianos, nativos, em detrimento de estrangeiros, é bom lembrar que os ucranianos estão fugindo da Ucrânia. Serão estrangeiros em qualquer outro lugar. E aí?! É isso mesmo que aqueles ucranianos que estão retirando os estrangeiros dos trens defendem? Que os ucranianos sejam tratados em qualquer outro lugar do mundo do mesmo modo como eles estão tratando os estrangeiros na Ucrânia? Além disso, temos o princípio de que todos os seres humanos são iguais em dignidade e direitos… pra dizer o mínimo.

Mas fatos como esse mencionado é uma constante que ganha imagens novas diariamente, que inclusive está sendo denunciado internacionalmente e que parece ser apenas um dos sintomas menores de um estilo de pensamento de época. Me refiro às milícias de extrema direita da Ucrânia que chegaram a recrutar inclusive brasileiros alinhados com a ideologia de perseguição à minorias e que é tolerada pelo governo ucraniano, recrutamento esse que em 2016 foi alvo de ações por parte da Polícia Federal no Rio Grande do Sul, para desmontar o esquema.

Em tempo, isso não justifica a guerra, a morte, o sofrimento, os bombardeios, como quer Putin ao pedir a “desnazificação” da Ucrânia chamando a atenção justamente para essas milícias e suas relações com o governo ucraniano. Qualquer invasor dá as razões que lhe parecerem as mais nobres para uma invasão, mesmo que não sejam as honestas, as verdadeiras razões da invasão. Já vimos isso acontecer várias vezes por parte de outros países, como os EUA em busca de petróleo no mundo e dando motivos nobres para guerras, guerras essas que, com frequência, seguram governantes que antes estavam em apuros nos cargos, unindo o povo contra um inimigo em comum, em uma confusão por parte de governantes, entre a comédia pessoal da própria existência com a história universal.

Com fatos e questionamentos como esses, e após ter chamado a atenção para uma esfera caótica que faz com que a fácil polarização do “mal invasor” versus o “bem invadido” fique um pouco ofuscada, chamo para as reflexões uma das perguntas clássicas que nos acompanha desde que decidimos, enquanto humanidade, a viver em uma organização política: qual o motivo pelo qual abrimos mão de fazermos somente o que quisermos e nos submetemos a ordem de nosso soberano? Ou dito de outro modo, qual o motivo pelo qual vivemos em sociedade?

Alguns sugerem que um bom motivo é a proteção da vida, pois em um estado de natureza, em um estado no qual não houvesse leis, juiz e todo o aparato para a punição e a recompensa, a vida das pessoas estaria constantemente ameaçada pela possibilidade de morte violenta. Outros sugerem que um bom motivo é garantir a propriedade privada, pois se não houver uma instância neutra a dizer se algo é meu ou seu, nem plantar nem construir valem a pena, não há desenvolvimento, qualquer um poderia tomar a propriedade de alguém. Enfim, há ainda outras tantas respostas possíveis a esse questionamento, mas a ideia é tão somente problematizar o motivo pelo qual ouvimos um soberano, para que se proteja a vida? Mesmo que ele mande seu povo lutar sem armas contra um tanque? Para garantir o direito a propriedade? Mesmo que ele confisque o que lhe aprouver sem que isso esteja previamente legislado no acordo de convivência?

Para finalizar, não poderia deixar de lembrar de Sartre, para quem somos os únicos responsáveis por nossas escolhas, somos condenados a sermos livres. Diz o pensador francês que sempre temos escolhas. Mesmo o soldado que vai para a guerra, ele poderia escolher não ir, e assumir as consequências, seja prisão, seja a morte. Quando aceitamos uma ordem, mesmo que de um soberano, o fazemos assumindo a responsabilidade, concordando. Não há como deixarmos de sermos livres. Seja do lado da Rússia, seja do lado da Ucrânia, seja dos simpatizantes que estão viajando até lá para guerrear: será que os motivos para matar o outro são realmente justificáveis? Assumindo pessoalmente essa escolha, livre, sem jogar nas costas do soberano escondido na Rússia ou do soberano escondido na Ucrânia tal decisão, se consegue honestamente achar que se está fazendo o certo? Durma bem com isso!

*Dr. Leandro Rocha é professor da Universidade Estadual do Maranhão

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