domingo, 28

de

abril

de

2024

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Ao encontro de velhos rabiscos

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Desenterrou-os do pequeno baú em que por anos esquecidos ficaram. Renasceu

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Um dia cinzento como sua alma naquela tarde vazia. Vazia como há muito não sentia. Nem a taça do gelado espumante que sorvia, lentamente, nem o som do amado concerto de Rachmaninoff conseguiam levar para longe a angústia que envolvia todo o seu eu.

Sentou-se na escada circular que dava para o jardim. O jardim que por alguns dias estivera pleno com o riso dos seus. Fora linda aquela semana. Não apenas enquanto a família ali estivera reunida. Já nos dias que antecederam os dias santificados o bulício já era grande. Preparar a casa para recebê-los. Enfeitar o jardim. Esmerara-se no cardápio escolhendo os pratos que eles mais apreciavam.

E agora o vazio. Lembrava-se do tempo em que seu deambular não era claudicante, em que seus cabelos não eram prateados.

O nevoeiro cobria o entorno. Gotículas acumulavam-se sobre as pétalas das flores, sobre as folhas da pequena palmeira que à sua frente farfalhava.

Pensamentos a voar para os tempos em que engavetava seus poemas rabiscados. Sorriu. Desenterrou-os do pequeno baú em que por anos esquecidos ficaram. Renasceu. E sentiu dentro de si que apenas o seu físico já desgastado mostrava a passagem do tempo.

Papéis amarelecidos. Alguns rabiscados com a velha canetinha preta de ponta fina. Outros escritos na sua pequena Olivetti, velha companheira de tantos relatórios, prontuários, receias, fichários, contos, poemas…

O sol já se despedia atrás de grossas e negras nuvens. Sentiu a umidade e o frio a enregelar suas pernas.

Entrou na sala. Acomodou-se em sua poltrona predileta. Tornou a encher a taça com o gelado espumante italiano. Afundou em meio aos seus amados papéis.

Dentro de si sentiu o que escrevera como se agora, passados tantos anos, estivesse a jogar aquelas mesmas palavras no papel.

Esta coluna chegou

com as chuvas da primavera.

Chegou como a chuva de primavera.

            Esta coluna chegou

            com as flores em botão na primavera,

            como as flores em botão na primavera.

            Chegou com o verde

            atapetando a praça,

            como o verde atapetando o campo,

            enrodilhando o muro,

            alinhavando a cerca.

Esta coluna chegou

com a lua refletida na poça da calçada

para mostrá-la

aos que andam com os olhos no chão

para mostrar

como é bela a poça da calçada

quando nela existe o brilho de uma lua.

Esta coluna chegou

no vendaval que derrubou o meu pinheiro…

Esta coluna chegou

no vendaval que estraçalhou meu cedro…

Esta coluna chegou

para deixar no ar

o inebriante aroma da floresta

na imensidão da escura e silenciosa noite.

Esta coluna chegou

no vendaval que arrancou

a macieira predileta…

Para mostrar que mesmo caída ao chão,

raízes apontando ao céu,

consegue de flores cobrir-se…

para mostrar que mesmo assim vergada,

estará de frutos coberta na próxima estação.

                                               Escrito em 1975

E outros pedaços mais que de sua alma extravasa e jogava sobre as folhas de papel:

Este amarelo triste de sol

a despedir-se agora,

infiltra-se por reflexos

            como espelhos nesta sala.

E a tudo ilumina num repente

            para em seguida

apenas a escuridão entrar.

Assim foi teu sorriso inteiro

num último olhar,

a prometer infinitas esperas

para depois mergulhar no caos.

                                    Julho/1977

Sua ligação com espiritualidade:

O recomeço nos espera 

para outro caminhar

cheio de trilhas escuras

e penhascos tortuosos.

Agora nós sabemos

preciso é caminharmos juntos.

Para juntos chegarmos

ao fim da escada.

Para juntos chegarmos

ao fim da estrada.

Preciso é chegarmos

enquanto existirem

flores nos campos

e frutos nas árvores.

Não mais como agora,

de mãos vazias,

de mãos sozinhas

chegamos apenas

ao encontro de árvores secas,

árvores crestadas,

árvores desgalhadas

em crestado e seco solo.

Vamos nos dar as mãos.

Caminharmos juntos é preciso.

                                    1976

*

Passou horas a reler seus velhos poemas, seus velhos textos. Até sonhou com o livro em que eles estariam inseridos.

Acordou feliz. E passou a digitar todo o conteúdo há tanto tempo no fundo de um pequeno baú. De imediato surgem em sua mente os mais variados títulos do livro que publicaria.

O tempo lá fora não mudara. Continuava cinza. Mas sua alma sorria em um fantástico colorido.

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