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A urgência em democratizar o conhecimento

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Perder faz parte. Não estar bem é normal. Acontece

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Leandro Rocha*

A ignorância absurda chegou a uma configuração inacreditável. Pessoas que optaram por abandonar toda e qualquer capacidade de colocar-se no lugar do outro, impedindo que qualquer um, inclusive cidadãos com cirurgia agendada e outras tantas urgências passem, em uma via pública, simplesmente porque o candidato deles perdeu a eleição é uma das cenas mais comuns que temos visto cotidianamente e está se tornando banal. Todos os que votaram no candidato perdedor estão na rua cometendo crimes? Todos são vagabundos? Não, a grande maioria de quem votou no candidato derrotado, bem como em quem votou no candidato eleito, está trabalhando, tocando a sua vida como se espera em uma democracia.

Nós, enquanto geração, sabemos perder? A cobrança a todo momento, é para sermos os melhores da turma, os melhores nos concursos, tendo tomado as melhores decisões, feito o melhor negócio, e por aí vai. É para sermos os campeões, trazer a taça pra casa! Felicidade estampada no rosto é uma obrigação. A gente responde que “está tudo bem” no automático, mesmo em um hospital ou velório. É interessante termos presente que não é um problema se não estivermos o tempo todo bem, o tempo todo felizes. Perder faz parte. Não estar bem é normal. Acontece. Errar, até o Ministro da Economia erra (e como erra!).

A ideia de tratar as crianças como sendo príncipes e princesas, é bom que a gente se atente, príncipes e princesas têm súditos. Quem é o súdito? Os pais? Os outros? Os professores? Quem te atende no dia a dia são seus súditos? Será que ensinamos os nossos filhos que mesmo com dor de cabeça, cólica, mesmo depois de uma decepção ou um desentendimento, precisamos encarar o mundo real, ir pro trabalho e, isso sem descontar nas demais pessoas, pois elas não têm nada a ver com o nosso problema? E, quando acostumados a verem seus desejos realizados pelos demais desde criança e o seu candidato perder a eleição, estão preparados para seguir o jogo democrático, ou vão fazer baderna na rua, espernear feito criança mimada no chão do supermercado por não ter ganho o doce?

Como se não bastasse a tentativa pífia de solicitar intervenção militar, há nesse grupo de uns poucos gatos pingados arruaceiros, inclusive, quem queira intervenção alienígena, e isso mandando um sinal de socorro para o céu, com a luz do celular (como se tal luz pudesse ser vista de longe) e, ainda, em uma tentativa risível de Código Morse. Mesmo que tivessem acertado a linguagem, naquele tampar e destampar frenético da lanterna do celular (alguns apontando a lanterna do celular pra própria careca ao invés do céu), precisariam torcer para os alienígenas também entenderem a linguagem, para também usarem Código Morse em seus planetas de origem.

Tem muita burrice envolvida. Há também burrice somada a faltas éticas. E há burrice somada com crimes. Que os criminosos sejam encaminhados para as cadeias e para o sistema jurídico, e que o novo governo faça o que esse, que está apagando as luzes, não fez: invista em educação, pois o caminho é apenas um. Atualmente temos mais de 4.400 obras paradas na área de educação, segundo divulgado essa semana pelo Tribunal de Contas da União.

Uma filósofa iluminista, Mary Wollstonecraft, parece ter razão. Não adianta dar simplesmente o acesso a participar das decisões das coisas públicas, é necessário também que, para isso, as pessoas tenham condições reais de liberdade e acesso à educação de qualidade. E com educação não estou dizendo diploma. Um diploma é parte disso, mas, como bem se sabe, não implica necessariamente em a pessoa conseguir compreender o mundo que o cerca, ou, ainda, conseguir fundamentar as suas opiniões. A educação não se reduz a um diploma.

A própria liberdade, entendida como a capacidade de compreender a situação e tomar uma decisão correta por mais que não houvesse lei alguma, por mais que nenhuma punição terrestre e nem divina obrigasse, ou, ainda, entendida como autonomia, ser o autor da própria lei, é uma capacidade que pode ser entendida como um dos melhores usos que podemos fazer da nossa razão. E a razão não nos é dada pronta e acabada, precisamos desenvolvê-la aos poucos, no dia a dia.

Espinosa também poderia nos ajudar a pensar o modo como nos relacionamos com os nossos afetos e com a ética. Para esse pensador, temos uma potência de existir e de agir. Quando a intensidade dessa potência de existir e de agir é diminuída ou aumentada totalmente ou parcialmente externamente, ou seja, tendo em vista outras pessoas, situações e contextos, não estamos no melhor uso de nossa condição. Há, para o filósofo, condições de o sujeito só depender dele mesmo, de uma determinação interna para aumentar a sua potência de existência e de ação, se realizando independente do resultado do jogo de futebol ou do resultado da eleição.

O que nos cabe é colaborar para democratizar o conhecimento, para que, com o esclarecimento das ideias, dos conceitos, com a potencialização do uso da razão, que seja cada vez menor o número de adultos que não conseguem entender o que se passa ao seu redor para além de seu grupo de zap, de adultos que não se importam com a necessidade dos outros, de adultos que cometem crimes achando que estão com a razão e que são os “cidadãos de bem”. Que se identifiquem com ideologias políticas de direita, de centro, de esquerda, à vontade, mas que o façam de modo fundamentado, e não pautado em dogmas. Que entendam o que é ética, o que é política, o que é democracia, o que é povo, e que o povo não é somente o seu umbigo ou os seus amiguinhos. Nosso trabalho, com a democratização do conhecimento, é para que se diminua a ignorância.

*Leandro Rocha é professor de Filosofia e Ética na Universidade do Estado de Minas Gerais

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