Articulistas refletem falas do ministro da Educação
Sandro Luiz Bazzanella *
Luiz Eduardo Cani**
“Universidade é ‘para poucos”
“Depois termina o curso e fica endividado. E não consegue pagar porque não tem emprego”.
“Há crianças com “um grau de deficiência que é impossível a convivência””
“Ser um professor é ter quase que uma declaração de que a pessoa não conseguiu fazer outra coisa”
Milton Ribeiro – Ministro da Educação
Prezados(as)! Estas falas públicas são a expressão do pensamento dos “homens de bem”. Sim, é isto mesmo que você acaba de ler: “homens de bem”. A perspectiva é patriarcal. Não faz referência às “mulheres de bem”. Subentende-se que se elas existem devam ser obedientes aos seus maridos. Zelar pelo bem-estar da família e administrar parcimoniosamente a economia doméstica. Sob tais pressupostos, o governo do Talibã no Afeganistão é composto por “homens de bem” (treinados, financiados, perseguidos e agora autorizados pelos estados unidos a voltar ao poder). E no melhor estilo autoritário… “não se fala mais nisso”.
A expressão, os “homens de bem” se refere majoritariamente àqueles que se apresentam como adeptos do pensamento liberal (defesa do direito de propriedade e da liberdade). Há uma contradição insofismável nas origens do pensamento liberal (político e econômico), que se constituiu entre os séculos XVI e XVIII no velho continente europeu, sobretudo na Inglaterra e, no outro lado do atlântico em sua colônia os Estados Unidos, também conhecidos como os “campeões da liberdade”. Tratava-se de justificar o direito de usurpação das terras comuns dos camponeses ingleses (cercamento), da usurpação das terras e extermínio dos povos indígenas pelos colonizadores norte-americanos e, sobretudo em ambos os lados do atlântico de fazer uso extensivo e, bárbaro da escravidão dos povos africanos. Desculpem a repetição (é didático), a expressão “homens de bem” remonta a partir do pensamento e das práticas liberais às aristocracias nobiliárias e, oligarquias agrárias, que não poupavam esforços em roubar, pilhar, explorar e moralizar (ineptos para a disciplina do trabalho) as camadas mais baixas de suas populações, bem como outros povos e culturas mundo afora.
Não por acaso, no início do século XX o jornal do grupo supremacista branco (Ku Klux Klan), composto pelas “elites brancas” (expressão pleonástica, na medida em que o estatuto jurídico da segregação racial nos EUA somente passou a ser desmontado na segunda metade do século, por força dos movimentos sociais que culminaram no caso Brown v. Board of Education em 1954, no Civil Rights Act de 1964 e no Voting Rights Act de 1965) estadunidenses, recebeu o título The Good Citizen (O Cidadão de Bem), o qual foi editado entre 1913 e 1933.
Talvez esta sucinta digressão torne compreensível (ou não) ao leitor as análises historiográficas, sociológicas e filosóficas, que demonstram a derivação a partir dos pressupostos liberais das experiências políticas e estatais totalitárias de matriz nazistas, fascistas vivenciadas nas primeiras décadas do século XXI. Mais do que isto, a existência cotidiana no interior dos “Estados democráticos de Direito” de matriz liberal do estado de exceção, que se caracteriza pela constante retirada de direitos civis, individuais e sociais a partir da suspensão da ordem jurídica vigente.
Ou dito de outra a forma, a ordem liberal, expressa aqui como a manutenção e concentração dos privilégios da aristocracia, da oligarquia agrária, industrial e financeira (na atualidade) requer a manutenção de um contínuo estado de exceção, a partir do qual se justifica uma intestina guerra civil entre indivíduos, comunidades, sociedades, povos e países. É preciso produzir continuamente “vida nua”. Vidas desprovidas de propriedade, de direitos, de expectativas de vida. Refugiados. Refugos humanos. Apátridas vagando, ziguezagueando desesperadamente nas fortificadas fronteiras dos “povos desenvolvidos”. É preciso promover a contínua existência do “exército de reserva”, de seres humanos considerados pela lógica do capital de “desqualificados” às exigências instrumentais e tecnológicas em curso. Sobretudo, é preciso manter a contínua “moralização” (não se esforçam para vencer na vida; fazem muitos filhos; exigem apenas direitos) sobre as massas desapropriadas, expropriadas pela lógica liberal de acumulação do capital. A moralização vem acompanhada da criminalização do desqualificado, do pobre, do refugo, do apátrida expresso na difusa opinião pública, que vocifera pela menoridade penal, que justifica a necessidade de liberação de armas à população, que demanda por maior rigor, senão até de implementação de práticas sádicas contra os apenados, os presidiários. Mas, também uma opinião pública que fascinada pela produtividade do “agro” vira as costas para a queima das florestas (improdutivas em seu estado natural), para o extermínio dos povos indígenas (preguiçosos, consumidores dos impostos pagos pela sociedade laboriosa)
Na atualidade os “homens de bem” se apresentam como defensores do “neoliberalismo”. Trata-se de visão de mundo de origem liberal, e surgida também como modo de resposta à crise do liberalismo, revisada à luz de um mundo extensamente povoado, que se apresenta limitado em seus recursos naturais. Ou ainda, de um mundo transformado numa “aldeia global”, em que a escassez de recursos, os limites ambientais e, os conflitos sociais derivados de estratégias aristocráticas e oligárquicas de progresso (séculos XVIII e XIX) e, de desenvolvimento (século XX, XXI) se apresentam na devastação do mundo natural e humano. Existem especificidades e diferenças na definição do conceito de neoliberalismo, que implica na singularidade dos povos e países, mas em função da proposta deste texto deixaremos para um outro momento tais definições.
Sob tais pressupostos, a ideologia neoliberal em curso é tão contraditória e agressiva, ou mais, que seu antecessor, o liberalismo político e econômico. Afinal, o neoliberalismo em suas facetas políticas, econômicas, sociais e culturais tem como fundamento primeiro a “concorrência” de todos contra todos, sejam povos, países, regiões, localidades, ou indivíduos. Competitividade, empreendedorismo, livre iniciativa são “habilidades e competências” a serem desenvolvidas para sobreviver no interior da lógica do mercado, elevado neste contexto, a demiurgo ordenador do mundo em curso. Aos povos, as massas, aos indivíduos, que não se adaptarem que não responderem de forma suficiente às exigências concorrências neoliberais em curso restam o reconhecimento de seu próprio fracasso, do fracasso de parcelas supérfluas de suas populações.
Demonstrativo desta racionalidade são os jargões amplamente difundidos, tal como o de meritocracia, que em fundo último nada mais revela senão a noção de responsabilização individual pelo próprio sucesso ou fracasso. Não é o caso que cada indivíduo não seja responsável por suas ações, mas sim trata-se de considerar o contexto e as possibilidades em que estão circunstanciadas as ações. Se um herdeiro de uma grande fortuna fundou sua empresa e hoje é bem sucedido, e um filho de empregada doméstica não o fez, não se trata apenas de preguiça deste último. Nesse sentido, o jargão do “empreendedor de si mesmo” revela nada mais do que esta mesma racionalidade. Trata-se de promover em um mundo cada vez mais competitivo para que o esforço individual seja reconhecido por meio de bons empregos. Quando este reconhecimento não vem, só pode haver uma resposta: não houve esforço suficiente.
Fato é que esta lógica da competitividade e responsabilização individual serve à reprodução, se não aumento, das desigualdades sociais. O discurso neoliberal, neste sentido, difunde uma ampla individualização da responsabilidade pelo sucesso ou fracasso individual, ao mesmo tempo em que parece mascarar o fato de que as condições para alcançar o sonhado sucesso não são as mesmas entre os indivíduos.
As frases pronunciadas pelo atual ministro da educação brasileira não trazem novidade. Apenas expressam de forma inequívoca o pensamento e a ação dos “homens de bem” que governam o país (e de parte de seus apoiadores no interior da sociedade brasileira), sob os preceitos neoliberais, com um aparente malthusianismo social de fundo. O ministro e o referido governo, do qual faz parte, não se apresentam como “pontos fora da curva”, mas como a expressão do modus operandi das oligarquias agrárias e das aristocracias financeiras nacionais e globais articuladas e agressivas em torno da expropriação do trabalho das massas, no controle dos recursos naturais que ainda restam no planeta, bem como na concentração do capital socialmente produzido, mas privadamente acumulado.
Nesta perspectiva, trata-se cada vez mais de sequestrar o mundo compartilhado, de afirmar “legalmente” e coercitivamente a posse privada dos bens comuns (recursos naturais, serviços públicos essenciais), do aniquilamento sumário de direitos, de desprezo por ações altruístas, solidárias, cooperativas entre seres humanos, povos e países. Estamos diante de governos ilegítimos que se mantêm no poder a partir da difusão do discurso da competitividade individual. Trata-se de disseminar a ideia de que meu semelhante, meu vizinho, meu outrora amigo é um potencial competidor, alguém a ser batido, vencido, cancelado. Governos que esgarçam e contraditam o tecido social promovendo a “stasis” a guerra civil generalizada local e global.
As falas do ministro não são equivocadas. Cumprem com sua função. Difundir no tecido social a inutilidade do ensino superior, da universidade, da pesquisa, do pensamento crítico, criterioso, suficientemente humano e comprometido com o mundo, com a compreensão dos seus limites, de seus problemas humanos, ambientais e vitais. Repita-se: se trata de destruir o mundo em sua dimensão compartilhada. Ou dito de outra forma, trata-se de destruir ideias de cooperação e de compartilhamento do humano como expressão de uma condição humana colaborativa e solidária.
As falas do ministro são instrumentais, eugenistas, articuladas como uma visão econométrica e instrumental da vida dos indivíduos tomados como unidades produtoras e consumidoras. Tais pronunciamentos são a expressão da barbárie totalitária neoliberal que anuncia a necessidade premente de uma gestão “racional” dos recursos humanos necessários à reprodução da lógica do capital. É a expressão do eugenismo inerente às práticas totalitárias nazistas e fascistas. Investir recursos públicos (exigidos à remuneração do capital privado) em filhos de pedreiros, serventes, de empregadas domésticas, entregadores de comida, de encomendas, em crianças deficientes e, inúmeras outras crianças advindas de condições precárias é conflitante com a lógica neoliberal, por isso é reputado “irracional”. Racional, nos termos da lógica imediatista dos lucros x prejuízos, é a adequada gestão destes recursos. O descarte humano e social é alternativa viável e, como tal, desejável, afinal não há e não haverá recursos (mundo) para todos.
Diante deste cenário urge a paralização da máquina política, econômica, jurídica totalitária em curso. É preciso profanar o mundo. Devolvê-lo ao uso comum… o que requer apenas que nos desafiemos a pensar profundamente o mundo, a compartilhá-lo com o outro ao nosso lado, que se dê conta de que a própria vida vale a pena ser vivida em sua inutilidade produtiva e consumidora em companhia com outros indivíduos improdutivos que se desafiam a contemplar e a pensar a condição pública e comum do mundo e, da vida, da educação.
*Sandro Luiz Bazzanella é professor de filosofia
**Luiz Eduardo Cani é professor de direito