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Soy loca, Lorca, feito um chien no chão

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Autor propõe uma desleitura de mundo

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Ao ler “Soy loca, Lorca, feito um chien no chão”, do professor da UFSC Marcio Markendorf, a primeira associação que me ocorreu foi com o Phármakon do diálogo socrático em Fedro, de Platão, no qual se concebe a escrita como sendo ora veneno, ora remédio. Depois, outros filósofos, como, por exemplo, Paul Ricoeur, afirmaram que a memória pode ter um caráter de Phármakon, posto que, algumas vezes, as lembranças são agradáveis, outras, nefastas. Em minha tese de Doutorado, ousei estender o raciocínio dos estudiosos e declarar que o esquecimento tem, também, essa peculiaridade, pois olvidar, em certas ocasiões, é uma dádiva, em outras, um tormento.

No enredo de Markendorf, que é uma desleitura de mundo, desde o não enquadramento nos tradicionais gêneros literários, à protagonista que não se emoldura nos padrões, a personagem trava um diálogo consigo mesma, discorrendo sobre o amor platônico que nutre pelo poeta espanhol Federico García Lorca. Ao longo da narrativa, discute com a própria memória, sendo esta mais veneno do que remédio porque as remembranças, na grande maioria das vezes, causam sofrimento: “Um modo de nunca se machucar é não ter a história dos outros, não saber nada, viver no mistério, na mais sombria ignorância, tudo para nunca nunca nunca tornar-se responsável por nada” (MARKENDORF, 2019, p. 31).

No entanto, apesar de desagradáveis, a protagonista tem a volúpia da recordação, uma vez que as lembranças, mesmo que distorcidas pelo desejo, são suas únicas companheiras e sua maneira de absorver os sentidos: “[…] preferia penetrar minha mão em gavetas pré-históricas do meu passado, como quem cumpre uma tarefa arqueológica delicada e indizível” (MARKENDORF, 2019, p. 32).

Logo, no seu monólogo dialético, declara que o esquecimento absoluto é sinônimo de paz, sobretudo quando se trata de um amor irrealizável:

Muitas vezes eu esquecia o quanto esquecer era fundamental para uma vida menos sofrida. E vivia a recordação que mantinha viva a dor de não te ter. E era como o coração da morte, muito pequeno e sem ritmo. Tenho esperado tanto a materialização improvável do teu corpo em minha morada, que o céu já não suporta mais tanto vermelho subindo pelo telhado (MARKENDORF, 2019, p.34).

Não obstante o alívio que seria o apagamento total de sua carga memorialística, ela agarra-se às reminiscências, pois elas são seu abrigo, seu lugar-no-mundo e sua liberdade, mesmo que a escravizem:

Eu luto todos os dias contra o esquecimento do teu nome, não há satisfação em lutar, não há. Eu o escrevo nas paredes, nos batentes das portas, nos tijolos queimados, no ferro retorcido da cidade arrasada. Para não te esquecer, eu tatuo teu nome na porção fantasma de mim. Para a recordação caber inteira no teu nome, eu me estiro na sombra do tigre, na sombra dos que desapareceram nos últimos nove segundos, no momento fatal do teu amor. Eu derrubo minha própria sombra no glitter das cinzas que existiram depois que tudo desapareceu. A memória? Eu esqueci. Esqueci que para nunca mais lembrar teu nome precisaria ser o mesmo que o meu. E sendo um só, teríamos queimado, ardido em febre, cometido o pecado de esquecer um ao outro naquele tempo invisível em que poderíamos ter existido. Juntos (MARKENDORF, 2019, p.20-21).

Como podemos ver, a luta entre lembrar e esquecer, se embebedando no dialogismo do Phármakon, em suas facetas linguísticas, mnemônicas e de olvido, pode ser considerada a coadjuvante da narrativa.

Outro aspecto que fica evidente é o caráter heideggeriano, uma vez que a protagonista, após constatar a vã batalha que estabelece entre rememorar e apagar lembranças, se convence da premissa do filósofo Martin Heidegger, para quem a libertação só ocorre no momento derradeiro: “Prefiro a morte a essas neuroses que me enlouquecem e me botam preso num corpo-cárcere, nesta limitação de vir a ser” (MARKENDORF, 2019, p.25).

Ademais, o livro também pode ser considerado uma homenagem a Federico García Lorca, fato que estende o phármakon a nós, leitores, pois não seria nossa função, a partir da leitura e da memória coletiva, impedir que artistas fenomenais sejam esquecidos? Se acrescentarmos que ele foi uma vítima do Fascismo Espanhol, temos ainda mais motivos para suscitar a discussão desta memória tão brutal.

Para finalizar, acrescento um poema de Manuel Bandeira que, assim como Marcio Markendorf, prestou uma bela homenagem ao poeta espanhol no intuito de exaltar sua genialidade e, através do trabalho com a linguagem, driblar o esquecimento de seu legado literário e histórico-militante:

Verso a Frederico Garcia Lorca

(Manuel Bandeira)

Sobre teu corpo, que há dez anos
se vem transfundindo em cravos
de rubra cor espanhola,
aqui estou para depositar
vergonha e lágrimas.

Vergonha de há tanto tempo
viveres — se morte é vida —
sob chão onde esporas tinem
e calcam a mais fina grama
e o pensamento mais fino
de amor, de justiça e paz.

Lágrimas de noturno orvalho,
não de mágoa desiludida,
lágrimas que tão-só destilam
desejo e ânsia e certeza
de que o dia amanhecerá.
(Amanhecerá.)

Esse claro dia espanhol,
composto na treva de hoje
sobre teu túmulo há de abrir-se,
mostrando gloriosamente
— ao canto multiplicado
de guitarra, gitano e galo —
que para sempre viverão
os poetas martirizados.

(MARKENDORF, Marcio. Soy loca, Lorca, feito um chien no chão. São Paulo: Urutau, 2019).
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