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Capitães da Areia

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Reli o livro pelo envolvente estilo do escritor, que já na meninice me fisgou

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Desde o início da minha adolescência tenho um ritual, para mim sagrado e inegociável, que pratico durante minhas férias de verão: reler a obra “Capitães da areia”, de Jorge Amado. Neste ano, após conhecer as ruas e praias de Salvador, que são os cenários onde transcorre o enredo, iniciei a leitura e me questionei: qual a magia desta narrativa que me encanta há duas décadas?

Munida de meu conhecimento como Doutora em Literatura, tentei encontrar uma justificativa para o fascínio que me instiga a, todos os janeiros, percorrer as páginas deste livro. No entanto, a resposta não está nas teorias aprendidas durante a Pós-graduação, mas sim no envolvente estilo do escritor, que já na meninice me fisgou, o qual mistura sensualidade e militância, lirismo e denúncia social, isto é, uma forte carga humanística.

Tive a oportunidade de visitar a residência do escritor, conhecida como a “Casa do Rio Vermelho”, aberta ao público e onde se conservam intactos os objetos e móveis, dando ao pesquisador a oportunidade de se inserir no ambiente em que o exímio romancista escrevia e, assim, sentir o que transpira em suas narrativas: alegria, paz, conhecimento, temperos, História, engajamento, ecletismo, magia, lealdade e, sobretudo, liberdade. Aliás, esta última é o fio condutor de toda sua produção literária, especialmente do livro em questão, e um dos motivos que me auxilia a entender porque sou tão encantada por ele. Ou seja, o desejo da liberdade é o mais humano dos sentimentos, é o elo que nos une a todos, que nos iguala e nos impulsiona: “A liberdade é como o sol. É o bem maior do mundo” (AMADO, 1996, p.192).

“Capitães da areia” aborda a história de um grupo de meninos abandonados que se escondem nos trapiches e sobrevivem de pequenos furtos e traquinagens, sempre se esquivando da polícia e do terrível destino de serem levados ao reformatório, onde o tratamento é desumano. Muito embora estejam inseridos numa conjuntura atroz, em que a infância é ceifada, não perdem os traços genuínos da inocência pueril, como vemos no excerto abaixo:

O sertanejo trepou no carrossel, deu corda na pianola e começou a música de uma valsa antiga. O rosto sombrio de Volta Seca abria num sorriso. Espiava a pianola, espiava os meninos envoltos em alegria. Escutavam religiosamente aquela música que saía do bojo do carrossel na magia da noite da cidade da Bahia só para os ouvidos aventureiros e pobres dos Capitães da Areia. Todos estavam silenciosos. […] Então a luz da lua se estendeu sobre todos, as estrelas brilharam ainda mais no céu, o mar ficou de todo manso (talvez que Yemanjá tivesse vindo também ouvir a música) e a cidade era como que um grande carrossel onde giravam em invisíveis cavalos os Capitães da Areia. Neste momento de música eles sentiram-se donos da cidade. E amaram-se uns aos outros, se sentiram irmãos porque eram todos eles sem carinho e conforto e agora tinham o carinho e conforto da música. Volta Seca não pensava com certeza em Lampião neste momento. Pedro Bala não pensava em ser um dia o chefe de todos os malandros da cidade. O Sem-Pernas em se jogar no mar, onde os sonhos são todos belos. Porque a música saía do bojo do velho carrossel só para eles. E era uma valsa velha e triste, já esquecida por todos os homens da cidade (AMADO, 1996, p.59).

A sociedade os repele o os deseja presos. Mas o padre José Pedro, a contragosto da organização católica, tenta ajudar aos Capitães da Areia, pois acredita que os ideais comunistas podem ser concretizados, ou seja, igualdade de oportunidade e, acima de tudo, a liberdade, o respeito e o extermínio de qualquer tipo de preconceito ou segregação. Por isso, sofreu perseguições e afastamento de suas funções eclesiásticas, uma vez que os donos do poder se sentem inseguros toda vez que alguém tenta romper a pré-estabelecida divisão de classes, temendo a ascensão dos menos favorecidos.

Jorge Amado, grande militante e conhecedor do contexto delicado em que estava inserido, se mostrou avant la lettre no enredo de “Capitães da Areia”, isto é, a frente do seu tempo, pois já preconizou, em 1937, a instauração do regime que roubaria a liberdade de muitos. O líder do grupo dos meninos, Pedro Bala, filho de grevista que morreu lutando pelos direitos dos doqueiros, idealiza ser revolucionário e batalhar por melhores condições, não apenas para crianças abandonadas, mas para todos.

Quando adulto, Pedro Bala opta por seguir os ideias paternos, e, durante a Ditadura Militar, nos jornais alternativos, os únicos que, driblando a censura, ainda circulavam, aparece como o militante proletário que resiste à perseguição, fazendo da revolução sua pátria e sua família:

No ano em que todas as bocas foram impedidas de falar, no ano que foi todo ele uma noite de terror, esses jornais (únicas bocas que ainda falavam) clamavam pela liberdade de Pedro Bala, líder de sua classe, que se encontrava preso numa colônia (AMADO, 1996, p.256).

Por tratar de assuntos atemporais, que nunca deixam de fazer parte dos dilemas humanos, como as injustiças sociais e a luta pela liberdade, “Capitães da Areia” é um livro para a vida. É por isso que continuarei praticando meu ritual de relê-lo durante as férias e ele continuará me auxiliando a refletir sobre História e sociedade.

(AMADO, Jorge. Capitães da Areia. 86 ed. Rio de Janeiro: Record, 1996).
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