domingo, 28

de

abril

de

2024

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Visões alucinógenas em uma mente sã

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Difícil, quase impossível tornava-se a cada dia mais a comunicação com o pessoal de lá

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Sempre haverá um tempo de névoas nos olhos. Névoas que turvam a visão do mundo, a visão da vida. Opacos cortinados a ofuscar paisagens, a ofuscar luas, a ofuscar amores…

Aquele tempo era o tempo das névoas nos olhos. Muitas luas depois foi a vez do tempo das fantasmagorias, de visões alucinatórias, do entrar em um mundo psicodélico em que imagens transmutavam-se de segundo a segundo.

Estas imagens que se formavam à minha frente, com padrões totalmente distorcidos da realidade, não apareceram num repente.

Aproximaram-se aos poucos, a passos lentos, como se num andar claudicante.

À minha frente, na plana tela da tevê, desenrolava-se um velho filme de faroeste, em estonteante colorido. Repentinamente, em meio à verdejante floresta desenhavam-se enormes casarões, que mais pareciam castelos em tons amarelados com um infinito número de janelas escuras que, como buracos negros, surgiam e mudavam de lugar.

As legendas, escritas em cores amareladas, deram-me uma primeira impressão de que eram elas que dançavam ante os meus olhos atônitos.

A pandemia da Covid-19 ainda não arrefecera. Deixar meu tugúrio encantando do alto da colina era imprescindível, como imprescindível era o submeter-me a um exame oftalmológico antes que o mundo à minha frente desmoronasse.

Socorreu-me a sempre solícita oftalmologista amiga e colega Dra. Márcia, na Clínica Santa Luzia. Com todos os cuidados e proteção antivirais. E lá na frente, na tela onde letras se projetavam eu nada via além de escuros vultos dançantes. Achei maravilhoso o psicodélico tapete que fica em frente de sua escrivaninha. Círculos e elipses a dançar uma dança psicodélica. Um balé de cores. Linhas curvas entrecruzavam-se em todas as direções, alternando todas as cores de um arco-íris inteiro, sem se preocupar em seguir os tons progressivos deste arco. Logo tudo se transformava em círculos concêntricos e não concêntricos, em espirais, em linhas curvas que se perdiam no infinito sem jamais cessar aquela dança de formas e cores.

Após acurado e minucioso exame Márcia sorriu e falou-me ser hora de procurar o retinólogo professor Doutor Mário Junqueira Nóbrega, no Hospital de Olhos de Joinville.

Difícil, quase impossível tonava-se a cada dia a comunicação com o pessoal de lá. Parecia um tumulto de pessoas a procurar por atendimento em sua visão quando a pandemia já permitia que se saísse de casa.

Enquanto isso, as imagens perturbadoras já não eram apenas na tela da tevê. O telhado do vizinho estava sempre coberto de heras e até árvores por lá executavam seus malabarismos sensuais.

Não chovera, mas o asfalto do outro lado da minha rua estava sempre molhado espelhando compridas limusines brancas.

Certa tarde ensolarada um fusquinha verde, não satisfeito com a largura da rua fazia círculos dentro de meu jardim, atravessando a grade e o portão como se fosse um carrinho mágico.

Mas mágicos eram todos os veículos que se entrecruzavam pelas ruas.

Imensos cercados de madeira fechavam todos os caminhos por onde eu passava. Obstáculos transpostos por fascinantes carros que me conduziam.

Já era o mês de novembro. Luzes natalinas piscavam defronte as casas de comércio. E os mirabolantes veículos a voar em meio a elas.

À noite árvores secas de longos galhos negros retorcidos, como se cenários fossem de histórias de terror realizavam sobrenaturais balés imaginários pelas ruas, avenidas e calçadas. Eu transitava em uma cidade fantástica.

De dia o meu mundo era verde. Pequenos ciprestes de formato cuneiforme circulavam, às centenas, por todos os espaços. Era lindo ver minha vila de dia. O arvoredo a esverdear o mundo até o infinito.

Enquanto isso, a espera para que eu pudesse, urgentemente, realizar os tão esperados exames de minha visão. Já nos encontrávamos em novembro.

Não conseguia mais ler, escrever, ver filmes. As imagens alucinógenas perseguiam-me. Na tela da tevê à minha frente cenas repetitivas em um mesmo espaço e tempo. Apenas os sons mudavam. Personagens, em um mesmo momento caminhavam pela tela inteira, como a repetir, sem cessar, os mesmos gestos.

O cerrar dos olhos nada mudava. As mesmas visões repetiam-se sem cessar, sem cessar…

Somente ao dormir o mundo dos sonhos levava-me a visões naturais.

E então consegui, finalmente, comunicar-me com o Hospital de Olhos. Após números de telefone especiais que a Raquel — a especial secretária que há anos acompanha a Márcia — passou-me. Enfim, uma luz! Marcaram minha consulta para final de janeiro.

O desespero a tomar conta. Apenas uma coisa a consolar-me. Eu sabia que as alucinações não estavam em minha mente. Ficava a pensar o que se passaria na cabeça de pacientes e de seus circunstantes ao imaginar que já se encontrariam nas trilhas da loucura…

Somente depois que a Raquel passou uma tarde inteira a discar diretamente para a secretária do Dr. Mário tivemos um retorno. Ele próprio resolveria o assunto. Com urgência. Na tarde de uma sexta-feira, no final de novembro, recebi a confirmação de meu atendimento já na segunda-feira.

E para lá segui. Minha sempre solícita amiga Rosane Godoi dispôs-se a me levar. Acompanhou-me em toda aquela via sacra. Perambulamos de corredor em corredor em corredor, de sala em sala. Desfilei diante de uma parafernália sem fim dos mais diversos e modernos aparelhos que, a fundo, examinaram todas as células de meus olhos. Após análise de todos os resultados Dr. Mário pede-me para aguardar, com paciência, pois logo que findasse a enorme fila de pacientes que ele precisava ainda atender faria, de imediato, a necessária e urgente cirurgia. A laser.

Era noite quando tudo findou. Liberada com instruções precisas para que alguns colírios fossem ministrados em meu globo ocular.

O retorno teve imagens acrescidas pelas alucinações luminosas devidas à dilatação pupilar. Tinha que rir na noite nebulosa enquanto subíamos a serra e percorríamos depois as curvas, aclives e declives deste irregular e belo relevo de nosso planalto norte.

Incrível observar compridas carretas a trafegar pelas encostas. A iluminações dos faróis dos veículos e as das luminárias das margens das rodovias formavam círculos de minúsculas fagulhas a espalharem-se na noite escura.

Era imprescindível que a subida da serra fosse realizada com bastante lentidão. Pelas circunstâncias inerentes pós a delicada cirurgia realizada em meu deturpado olho.

Passava da meia-noite quando entramos em minha casa.

Aos poucos as imagens que me rodeiam foram tomando as suas formas reais. O telhado do vizinho voltou a ser apenas um telhado. Os carros não invadiram mais o meu jardim transpondo, magicamente o grande portão de ferro.

Retornei ao consultório da Márcia. Precisava mostrar-lhe a minha alegria de ver tudo voltar ao normal. Ela não entendeu o meu sorriso quando fixei meus olhos em seu tapete. Apenas um pequeno tapete, normal, com alguns desenhos escuros em meio a um fundo cinza. Onde foi parar aquele mirabolante tapete mágico? Dele, como das demais visões alucinatórias nada restou depois que o Dr. Mario, com pontaria certeira, dissolveu, com um aparelho de laser, o meu velho cristalino posterior que, de cristalino, nada mais tinha. Era apenas uma lastimável massa opaca.

A prova de que nada somos sem os que nos cercam. E ao meu feliz retorno ao mundo das imagens reais eu devo a tantos e a tantas que não mediram esforços para este feliz êxito. Obrigada é a palavra que define o que sinto! Obrigada!

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