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abril

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Uma fuga entre espumas

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Trançou as pernas e os finos grânulos do areal amaciaram a queda

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Sentada sobre um rochedo junto ao mar ansiosa vislumbrava as fímbrias do horizonte na expectativa de ver os rubros raios do sol tingirem as turbulentas águas delineadas ainda na penumbra à espera de um solene amanhecer.

Águas a bater sobre as pedras umedeciam a longa túnica branca que cobria seu corpo. Revolvia a areia a seus pés. Desenhos psicodélicos surgiam.  Que logo as ondas voluptuosas apagavam.

Há horas sorvera a última gota do último espumante. A solitária garrafa vazia fazia sua dança ao sabor das vagas que beijavam a areia e ao mar retornavam.

Ideias obnubiladas pelo vapor do líquido borbulhante que sorvera em profusão. Na memória laivos de um fim de festa. Laivos de uma desenfreada corrida ao mar. Laivos de um desespero que tanto a atormentara.

Aos poucos tingia-se de sangue o longínquo horizonte. Espargiam-se os raios do sol. Ensandecidas cores a mudar seus tons maquiavelicamente.

Da areia branquinha ela fez seu leito. Finíssimos grânulos cantavam sob sua pele. Até ouviu uma canção de ninar.

A túnica molhada envolvia seu corpo. Sentiu-se embalada pelos anjos e confortada por duendes entregou-se ao sono que a dominava. Findara o espetáculo de mais um crepúsculo do amanhecer.

O ruído de vozes ali perto envolveu-a. Olhos ainda cerrados fez sua mente em revolução voltar-se para a noite de angústia, para a torturante festa de onde fugira em busca de paz.

Começou a andar pela praia que lhe parecera sempre tão deserta. Onde teria largado suas vermelhas sandálias de salto agulha? Vestes ainda molhadas mostravam o torneado de seu corpo. Andava ao léu. Em busca não sabia do quê. Sim, ela sabia. Precisava sair em busca da paz de outrora.

— Ei, moça, está indo para onde?

 Olhou estupefata para a pessoa que lhe acenava de um carro estacionado na calçada da beira da praia.

— Precisa de uma carona? Estava à toa rodando por aí. Foi então que a vi andando meia trôpega, fazendo voltas e mais voltas.

— Não…  não… preciso… de… nada…. Apenas… de… paz… Deixe-me… em… paz. — respondeu com dificuldade, a voz empastada pelo efeito da bebida.

Continuou a andar sem nem saber para onde. Trançou as pernas e os finos grânulos do areal amaciaram a queda. Fosse talvez pelo álcool que ainda inundava seus neurônios, pelo abrasivo sol que os seus olhos toldava, pela fofa areia quente onde enterrava seus pés.

Transeuntes ajudaram a colocá-la no carro. Para uma clínica ali perto foi levada. Recuperada acordou em sobressalto.

— Fique tranquila, moça — a voz apaziguante de uma enfermeira acalmou-a.

— Com cheguei aqui?

— Uma pessoa que a viu cair na praia. Não se lembra?

Ela de nada lembrava.

— Onde está este anjo bom que me trouxe aqui?

Foi então que se viram de perto. O anjo e ela. Um frisson percorreu seu corpo. Palavras de agradecimento iam e vinham. E ela nada conseguiu falar. Esboçou apenas um sorriso meio sem graça.

— Bom, moça, agora que está recuperada irei levá-la para a sua casa.

— Para minha casa, não! Nunca mais quero pisar naquele inferno. — Foi a resposta brusca e rápida.

—Mas aqui não poderemos ficar. Trouxe uma roupa seca para você. Vista-se, arrume-se. No carro conversaremos para ver qual o melhor lugar em que poderá ficar.

Saíram em silêncio. No carro olhavam-se de esguelha.

— Realmente eu não tenho para onde ir. Fugi. Sumi. Nem minha bolsa peguei. Nem para um hotel eu posso ir.

— Isto não é um problema. É uma solução. Eu tenho uma pequena pousada numa praia deserta a poucos quilômetros daqui. Lá você poderá ficar até se recuperar bem ou pelo tempo que quiser.

Na casa do anjo ela foi ficando. Não era uma pousada. Era um recanto onde os mais variados artistas ser encontravam para, abstrata e simbolicamente resolverem os problemas da vida e do mundo.

Uma noite, sentada na areia com o torso encostado no tronco de uma palmeira, começou a chorar. Primeiro uns soluços baixinhos, depois um choro convulso. Quando deu por si o anjo estava a seu lado. Foi a primeira vez que ela conseguiu colocar para fora toda a angústia que a corroía.

Fora obrigada a casar com um monstro. Praticamente vendida pela família. Um industrial famoso que todo mundo admirava. Já na noite de núpcias ela quis fugir tamanho o horror que acometeu quando ele, selvagemente, a possuiu. A casa era uma fortaleza. Com seguranças por todos lados. Todas as regalias do mundo. Para os amigos que lá chegavam vivia ela em um paraíso. Podia circular pela cidade, ir aos shoppings, frequentar os clubes, festas em casa de amigos. Sempre rodeada pelos armados gendarmes sem farda.

— Em realidade eu me sentia como seu eu fosse uma prostituta. Ele até me oferecia aos amigos como se eu fosse um manjar de seus banquetes. E naquela festa, num palacete à beira da praia, em local bem distante de onde você me encontrou foi o dia em que jurei me libertar. Sumi. Consegui pegar um carro e em disparada voei para longe até acabar a gasolina. Tinha algum dinheiro na bolsa. Entrei num bar ainda aberto na madrugada. Em uma das mãos minha bolsa e uma sacola com garrafas de um espumante italiano. Com a outra levava o gargalo da espumosa bebida à boca. Fui andando e sorvendo aquela delícia. Em algum lugar a bolsa caiu de minhas mãos. Quando o conteúdo de uma garrafa findava eu a atirava na areia. Minhas sandálias também ficaram pelo caminho.

Foi então que suas mãos foram envolvidas pelas mãos do Anjo.

— Sabe, moça, durante estes dias todos em que você está por aqui o mundo lá fora continuou suas voltas. Há histórias que a mídia conta. Que os bombeiros vasculharam até as profundezas do mar em busca de uma linda jovem que deve ter se suicidado. Encontraram uma bolsa vermelha com documentos, cartões de crédito, um telefone celular e outros pertences que uma mulher sempre carrega consigo. E também um pé de uma sandália vermelha de salto agulha.

— Só agora você me conta?

— Eu esperei estes dias todos que você destilasse o veneno que a corroía. Poderia ser você como poderia ser outra pessoa.

— E agora? O que farei? Sou dada como uma suicida. E aqui estou.

O anjo continuou a olhá-la com uma ternura imensa. Afagou suas mãos. Olhos marejados em súplica. E um beijo selou suas vidas.

Repentinamente ela soltou-se dos braços do anjo.

— E agora? Eles poderão me encontrar. Levar-me-ão de volta àquela masmorra de luxo.

— Se você aceitar já acertei tudo com meus amigos. Uma pequena cirurgia plástica em seu rosto. Mudaremos a cor e o corte de seus cabelos. É só escolher um novo nome. Iremos viver em alguma ilha paradisíaca onde eu poderei continuar com o meu trabalho. Vi que você se encantou com as esculturas que enfeitam esta casa e este jardim. Quase todas estas obras foram feitas por mim.

— Mas como e do quê iremos viver?

— Não se preocupe. Tenho amigos artistas em várias partes do mundo. Iremos para onde o sol nos aquecerá durante o dia e a lua será o manto que nos envolverá em todas as noites.

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