O coração da jovem quase saltou para fora do peito. Parecia que uma força magnética a pregara ao solo
Para contar esta história necessário é relembrarmos as origens de duas pessoas que muito se amaram.
Ela, descendente de imigrantes escandinavos. Pele alva, cabelos loiros e reluzentes olhos azuis
Ele, um médico baiano, de tez morena e profundos olhos negros.
Ela, da família Nelonsen.
Ele, dos Moreira e Silva, de São Salvador, Bahia.
Quando a família Nelonsen desembarcou no porto de Santos, em meados do século dezenove, deparou-se com um mundo a ser ainda desbravado.
Eram pessoas de muitas posses. Adquiriram uma grande gleba de terras em algum ponto da região sul do país. Um ponto não muito bem definido para eles.
Em cima de carroções puxados por duas parelhas de cavalos empreenderam a longa viagem para o sul. Os inesperados percalços variavam desde a quebra das rodas dos veículos aos problemas de saúde.
Alguns jovens, cansados e desiludidos, resolveram permanecer pelas cidades prósperas por onde passavam. A esposa de Nelon Nelonsen foi acometida por uma estranha doença que a fazia tremer tanto como se estivesse possuída por um desconhecido demônio. Um curandeiro que encontraram pelo caminho falou-lhes em uma doença da mata conhecida por amarelão. Deu-lhe para tomar um remédio amargo extraído da casca de uma árvore. Melhoraram os tremores, baixou a febre, mas a fraqueza aumentou. O causador da doença já havia atacado o coração e em poucos dias ela sucumbiu.
Ao chegarem ao litoral de um dos estados do sul a comitiva restringia-se ao velho Nelon e Narben, seu filho mais novo.
Talvez pelo cansaço da longa viagem, talvez por haver perdido sua companheira de uma vida, talvez por ter se encantado pela vila que que via erguer-se à sua frente ali, à beira de um grande rio e uma estonteante baía. E a poucos quilômetros, o mar. Decidiu que aquele seria o seu ponto final.
Não demorou muito para Narben encontrar a sua Maria. Uma prendada jovem, filha de imigrantes alemães. Quando Nelon deixou este mundo, Narben foi atrás de um cartório. Apresentou os documentos das terras que eram de sua família desde que chegaram ao Brasil.
Sobravam, ainda, alguns dobrões em seu bolso. E a subida da serra foi iniciada. Tudo era muito longe. Não como seus pais diziam ser na terra natal deles. Na viagem a família foi aumentando. Ficavam meses em cada vila por onde passavam.
Até que, em um belo dia, já quase pelo fim do século dezenove chegaram ao ponto final da longa jornada. Era um mundéu que não acabava mais. Para lá se chegar só pelas trilhas dos carroções ou em barcos que singravam pelas águas dos rios.
Do cume do morro mais alto Narben estendeu a vista. E até onde seus olhos alcançavam era tudo seu. Um horizonte de trezentos e sessenta graus ao redor. O rio, ao longe, era a divisa de suas terras. Em sua imaginação viu a grande serraria a fumegar e a serrar aquela infinidade das mais variadas árvores. De grande envergadura. De robustos troncos. De grande altura.
No decorrer de sua vinda da pujante vila de serra abaixo já delineara sua primeira empreitada. Enviou cartas aos fabricantes de máquinas a vapor e de outras mais a fim de começar a sua pequena serraria. Que ficaria às margens do rio.
A gleba era imensa. Soube que dentro de poucos anos uma estrada de ferro passaria por ali.
Mandou vir um topógrafo da cidade grande mais próxima, distante a mais de duzentos quilômetros dali. Mandou repartir o que ele considerava o centro da vila em pequenos lotes com a finalidade de que ali se construíssem residências e casas de negócio onde as pessoas poderiam comprar de tudo. E ao longo dos caminhos, pequenos sítios destinados à lavoura e à criação de vacas leiterias, de suínos e de aves. Pequenas glebas que venderia a colonos imigrantes que moravam ainda nas terras de serra abaixo.
Narben era um visionário. Mas um visionário com os pés no chão.
Bem para além dos rios que ele via, a uma distância, talvez, de uns dez quilômetros em linha reta, uma cidade começava a se formar.
Em outro sentido, tomando uma trilha feita pelos carroções Narben chegava a outra vila. Lá já havia um banco e um cartório. Tudo o que precisava para prosseguir com seus negócios.
Alguns anos mais tarde, dentro de uma casa bancária de então Elsbeth, sua filha mais nova, encontrou dois brilhantes olhos negros embevecidos a mirá-la.
O coração da jovem quase saltou para fora do peito. Parecia que uma força magnética a pregara ao solo.
Ao chegar em casa correu a contar o seu mais novo segredo para Frida, sua irmã mais velha.
— E parece um artista de cinema. E até mais lindo que o Rodolfo Valentino.¹
O médico baiano João Pedro Moreira e Silva instalara-se a pouco tempo na cidade.
Aguardou alguns dias para retornar à casa bancária. Não queria demonstrar sua ansiedade em rever a bela donzela que revolvera seu coração. E sua mente.
A um dos funcionários perguntou quem era aquele simpático senhor que lá encontrara há poucos dias. O rapaz, ávido por captar a simpatia do jovem médico fez um minucioso relato acerca da família Nelonsen.
O poderio não o desanimou. Certa tarde encilhou seu cavalo e rumou para a Colônia São Bartholomeu que ficava a poucos quilômetros da cidade. Dirigiu-se, primeiramente, ao escritório da serraria dos Nelonsen. Fez de conta que iria comprar madeira para construir uma casa.
Deu algumas voltas pela Colônia e a cada volta parava um pouco à frente da grande casa em que morava sua musa. Quando já estava desistindo e pensava em retornar para a cidade eis que se abre uma janela e ele a vê. Mais linda que nunca. Ao, subitamente, frear seu corcel uma nuvem de poeira elevou-se no espaço. Foi o tempo de jogar um beijo no ar e ver a cortina fechar-se. Mas tinha a certeza de que naquela frestinha que restara estaria ela a olhá-lo.
Assobiando de felicidade, a trote lento, retornou para casa.
Então os malabarismos em sua mente não cessavam. Precisava inventar algo fabuloso na cidade a fim de cativar aquela família. A fim de que pudesse conversar com ela.
Um clube que congregava as melhores famílias da cidade fora inaugurado recentemente. O grande baile do ano já fora realizado. Mas ele realizaria outro. Em breve. Viajou até uma grande cidade. Que ficava a um dia de viagem por via férrea. Contratou uma famosa orquestra. E com data marcada para uma noite especial. Com a orquestra contratada e paga a diretoria da agremiação não teve como recusar um novo baile em sua sede.
E foi naquela noite que Elsbeth e João Pedro se aproximaram. Dançaram e conversaram. Conheceram-se. E ela o convidou para algum dia tomar um café da tarde com sua família. João Pedro aceitou. E assim as visitas tornaram-se assíduas.
Os pais e os irmãos, com reticências, aceitaram a amizade que logo se transformou em namoro. Não queriam magoar a menina da casa. Mas a tez da pele, os olhos da cor do azeviche e aquele cabelo quase encarapinhado do jovem deixavam a família em pânico.
Após um longo namoro, o noivado.
Os Nelonsen a imaginarem-se avós e tios de uma criança que, provavelmente, herdaria os traços de João Pedro.
Não queriam magoar a filha dileta impedindo o casamento. Mas poderiam impedir a vinda de um neto que não tivesse a cor da pele genuinamente branca.
Em certa manhã o casal e Elsbeth embarcaram no comboio da manhã rumo a uma cidade onde clinicava um famoso cirurgião. Elsbeth desconhecia o motivo da viagem.
Lá chegando foram direto a uma casa de saúde. O próprio médico recebeu-os à porta. A moça não entendera os porquês de permanecer em jejum após o almoço até a chegada no destino. Disseram-lhe que seria para evitar os enjoos da viagem. Da portaria da casa de saúde foi levada diretamente a uma sala de cirurgia. Em poucos minutos entrou em profundo sono sob o efeito dos anestésicos inalatórios.
Acordou com dores no baixo ventre. Afirmaram-lhe que um tumor fora extirpado.
Casou com João Pedro. Lua de mel em um navio que os levou a Buenos Aires onde sua mana mais velha já morava.
Passara-se um ano. E Elsbeth não engravidava. Falou aos pais que iria procurar um médico de fora para saber os porquês. E só então deram-lhe a notícia que abalou todas as suas estruturas. Um grito vindo do fundo de sua alma ecoou pelo sertão afora. Fora esterilizada naquela maldita noite, naquela maldita casa de saúde. Queria detalhes. O que realmente dela fora extirpado.
— Nada importante, filha — tentava, em vão, sua mãe consolá-la. — Nada importante. Só as suas trompas foram ligadas para que você não viesse a ser mãe de um ser que não fosse de nossa raça e da nossa cor.
O falso consolo atingiu-a mais fortemente que uma punhalada.
Aos prantos retornou para sua casa. Como explicar ao amor de sua vida a crueldade que fizeram com ela? Com eles?
João Pedro não conseguiu consolá-la. Porque a dor em seu peito era maior que o tamanho do mundo.
Na semana seguinte viajou para o Rio de Janeiro. Passaram-se meses. Um dia retornou. Havia encontrado uma mulher que lhe daria filhos. Mas o seu amor por ela continuaria em seu coração. A separação foi consumada.
Elsbeth foi morar com sua mana em Buenos Aires. Viajavam de trem dia e noite, A chegada em Uruguaiana era sempre um sufoco. Elsbeth dependia da autorização do marido para cruzar a fronteira. A mágoa e a chaga gravada no coração de João Pedro continuavam a correr sua mente. Como vingança fazia-os esperar até mais de uma semana pelos papéis oficiais.
Ser uma mulher separada não era tão horrível para a sociedade como ser uma mulher desquitada. Mas era a opção. Um desquite litigioso. João Pedro só assinou após uma negociação com o ex-sogro. O gordo cheque não amorteceu a mágoa que levava dentro dele. O dinheiro não apagou a dor.
Elsbeth continuou a viver com sua irmã e seu cunhado em Buenos Aires. Era a governanta do lar. A casa não funcionava sem ela. Tudo ela fazia.
Retornaram ao Brasil após a aposentadoria do marido de sua mana.
E viveu uma vida a sós. Um amor desfeito pela segregação racial.

¹ Famoso galã de Hollywood ao tempo do cinema mudo.