Onde encontraremos este assassino da inocência de uma criança em meio a esta tempestade e nesta escuridão?
Maria dos Anjos era uma frágil menina linda que aos onze anos levava uma vida feliz junto aos seus, em uma distante vila situada bem além daqueles conhecidos sertões de Deus.
Seus pais eram proprietários de um bem sortido armazém e de uma pequena pensão, a única a ser encontrada em toda a redondeza.
Passavam o dia a cuidar de seus afazeres, de seus hóspedes, de seus fregueses. À noite recolhiam-se para sua confortável casinha situada bem aos fundos do grande terreno.
Um bem cuidado jardim e uma pujante horta entremeavam as construções.
O dia havia sido de torrenciais chuvas. Os hóspedes, que na pensão pernoitaram, não conseguiram seguir viagem. E outros mais lá se abrigaram no correr do dia. Um tumulto nunca antes visto.
Até Mariazinha ajudou a servir as mesas. Não por muito tempo. Logo o sono a dominava.
— Mariazinha — falou-lhe a mãe, carinhosamente, dando-lhe um beijo — pegue esta capa e este guarda-chuva e vá para casa. Tem água quente na chaleira em cima do fogão. Lave-se direitinho, coloque sua camisolinha, faça as orações ao seu Anjo da Guarda e logo que tudo se acalme vamos para lá também.
Enquanto atravessava a horta, debaixo de um aguaceiro e sob os rojões que o céu mandava, o mundo sumiu a seus pés.
Era tarde já quando, finalmente, apagaram-se as luzes dos grandes lampiões e apenas tênues luzes de pequenas velas de sebo atravessavam as janelas quando os pais de Mariazinha foram para casa.
O desespero começou quando viram pegadas de um grande calçado enlameado desde a entrada até o quarto deles.
E sobre a grande cama o desfalecido corpo de sua menininha. Lençóis conspurcados de sangue e esperma. E Mariazinha em profundo sono, como que se anestesiada estivesse.
Dona Esperança teve que fazer um esforço supremo para não ir ao chão. Suas pernas bamboleavam. Seu marido já queria pegar uma espingarda e ir atrás do bandido que se aproveitara da escuridão e da tempestade para um tão ignominioso ato.
— João, tenha calma. Onde encontraremos este assassino da inocência de uma criança em meio a esta tempestade e nesta escuridão?
— Vou esperar que sequem estas pegadas e farei um molde. Juro, pela vida de nossa filha, que vou procurá-lo até os infernos e o jogarei dentro de uma pútrida e infecta masmorra.
Como levar a menina para o hospital da mais próxima cidade, distante mais de cinquenta léguas? Pediram a um dos agregados que fosse buscar dona Josefa, a parteira da vila para, ao menos, ver a menina e lhes dar algum consolo.
Solícita chegou a mulher já embarcada em seus sessenta anos e com uma extensa bagagem de histórias afins.
— Realmente, seu João e dona Esperança, o monstro fez um estrago bem grande aqui — disse ela apontando para o baixo ventre de Mariazinha. — Vou tentar dar uns pontinhos para parar este sangramento. O canalha rompeu as carnes da menina. O importante é que ela está viva. Pelo hálito de sua respiração o crápula deve ter posto um pano encharcado com algum soporífero. As Irmãs do hospital da cidade me falaram algum tempo atrás que deram por falta de um vidro de clorofórmio, uma medicação que os médicos usam para fazer os doentes dormirem durante uma cirurgia. Deve ter sido isto.
— Mais uma pista — falou seu João —. A polícia deve ter investigado.
Somente depois que as chuvas cessaram conseguiram ir até a cidade grande.
Uma cirurgia no períneo da menina foi realizada. Era cedo ainda para se saber de outras consequências. Era um tempo em que nem se falava em DNA. E nem o tipo sanguíneo do estuprador foi possível conseguir. Muitos dias já haviam passado.
No retorno para a sua pequena vila a fatalidade maior aconteceu. Rompem-se os travessões de uma ponte, justamente, na hora em que bem pelo meio dela estava a sua caminhonete carregada com produtos que abasteceriam a venda e a pensão.
Apenas Mariazinha sobreviveu. Órfã, sem ter parente algum que dela cuidasse. Foi entregue ao um orfanato de uma congregação de Irmãs Servas do Coração de Jesus.
Uma jovem freira que trabalhava no hospital como auxiliar de enfermagem perguntou a Mariazinha quando tinha sido sua última menstruação. Mariazinha nada entendeu. A freirinha então começou a explicar para ela.
— Não, Irmã Lourdes. Então ainda não fiquei mocinha, como a senhora diz. Ainda sou menina, pois não tive a minha primeira menstruação.
Com o passar das semanas notou-se que se avolumava o ventre da menina.
Levaram-na ao médico. Diagnóstico insofismável. Gravidez. Aos 11 anos. Seu primeiro óvulo fora fecundado pelo espermatozoide de um libertino, de um calhorda, de um vil estuprador.
As freiras cuidaram de Mariazinha no decorrer de toda a sua gravidez. Fizeram roupinhas para o anjo que iria nascer. Mimaram-na.
Começou a sentir fortes contrações em seu ventre quando estava no oitavo mês de gestação.
Sem condições de um parto normal foi submetida a uma cesárea. Uma criança dando à luz a outra criança.
Um organismo infantil que forneceu todos os seus substratos a um novo ser no decorrer de uma gravidez não teve o necessário arcabouço anatômico e fisiológico para sobreviver.
As fortes e contínuas contrações romperam as fibras musculares de um frágil útero desencadeando uma incoercível hemorragia.
O orfanato foi o lar do novo ser. As freiras sempre lhe diziam que sua mãe era uma santa.
Aos dezesseis anos cismou em saber quem seria seu pai.
Foi até a distante vila situada bem além daqueles conhecidos sertões de Deus.
Chegou até a velha pensão que tinha sido de seus avós.
Às perguntas que fazia nada ou pouco lhe respondiam.
Mas sempre chega alguém a interessar-se pelo assunto. Alguém com pimenta na língua e doido para uma conversa. Alguém que, de chofre, solta a terrível verdade.
— Então é você o filho daquele estuprador que apareceu aqui em uma noite de tempestade. O maligno encheu a cara e fez o que fez com a tal de Mariazinha, sua mãe.
O garoto, em pânico, entrou num bar. Precisava apagar o desespero. Tentou engolir uma forte bebida. Tossiu. Quase não conseguiu sorver o líquido. Aos gritos saiu a correr pelas veredas. Entrou em um armazém. Comprou uma corda. Disse que era para amarrar umas coisas.
Às pressas dirigiu-se para longe, aos berros. Não conseguia aplacar seu desespero. Jamais aceitaria ser o fruto, ser a consequência de um estupro.
Jogou a corda no galho da primeira árvore que encontrou.
Na manhã seguinte o povo de uma alvoroçada vila corria em desespero a fim de ver um jovem desconhecido morto, com uma corda em seu pescoço, pendurado em um desgalhado e negro tronco de uma velha imbuia.
Estupradores deveriam ser condenados à prisão perpétua!
São infinitas as consequências de seus ignominiosos atos.