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abril

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2024

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Tragédia em uma gélida tarde de junho

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Era preciso limpar o quarto onde todo o sangue de Terpsícore fora derramado

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Em plena tarde de um domingo invernal a médica anestesiologista Lisa foi ao hospital da pequena cidade onde morava a fim de atender a uma emergência. Seu colega obstetra, que realizara a cesariana convidou-a para tomar um café em sua casa. Contemplava, em silêncio, as obras de arte e a vasta biblioteca do amigo e nem percebeu que a chamavam para atender ao telefone. 

Lisa correu atender. Retornou mais branca que as brancas nuvens do céu. Um grito de dor soou dentro de sua alma ao ouvir o que sua irmã lhe dizia:

— Liza, a filha do Zeca morreu num acidente. Mamãe está desesperada.

Zeca era seu irmão mais novo. Major da Força Pública do estado. Morava na capital.

Nada explicou para os amigos e em alta velocidade voou até sua casa. E na escura e gélida noite de junho, tomaram a estrada para dar o conforto que Zeca e sua esposa precisavam.

A mãe de Lisa já tinha mais de oitenta anos. No decorrer de toda a viagem soluços entrecortados em meio às suas preces. Jamais se conformaria.

— Por que Deus não me levou em lugar de minha linda netinha?  Estou aqui a viver de gorjeta enquanto a minha menininha que tinha uma vida pela frente se foi…

A lua cheia de junho já estava no alto da abóboda celeste quando, enfim, entraram na casa onde a desolação passou a morar.                 

Terpsícore, em seu uniforme de colegial, sorria deitada entre flores. As freiras revezavam-se a seu lado, em preces.

Zeca inerte em sua cama não conseguia falar.

Terpsícore era uma menina feliz. Estudiosa. Aos doze anos já estava no terceiro ano ginasial. Matemática era o seu ponto forte.

— Acho que meus pais imaginaram que eu seria bailarina. E com o nome da musa da dança eu fui batizada. Mas quem baila por aqui — e apontava para a sua testa — é aquele batalhão de algarismos emaranhados a fazer piruetas em meus neurônios!

Estudava em um colégio de freiras francesas situado quase à beira da grande rodovia que naquele tempo já cortava a cidade.

Tinha sempre uma palavra jocosa para definir as momentâneas situações. Claro que ainda brincava em sua casinha de bonecas. Casinha minúscula, no fundo do quintal de sua casa, feita inteirinha pelas hábeis mãos de seu pai.

Ela já deveria ter uns oito anos quando o seu irmãozinho Cassio entrou em casa nos braços da mãe.

— Mas a mãe nem me contou que eu teria logo um irmãozinho?

 — Pois é, filhinha, este é o nosso menininho que nasceu em nosso coração.

Era a semana da Pátria. E a pequena Terpsi logo escreveu uma cartinha, assim meio garatujada para a vovó que morava longe.

Vovó, agora aqui em casa temos mais uma pessoa. Ele chegou bem no dia da pátria. E é bem patriota mesmo. Até as fraldas ele suja de verde-amarelo.”

A vó guardou a cartinha junto com seus mais amados pertences.

Moravam em um bairro pacato. Lá não se viam mansões, mas casas de pessoas que trabalhavam a semana toda e nas noites de sábado, após os ofícios religiosos, reuniam-se no grande salão da comunidade. Tudo era motivo de festa. Todas as famílias levavam seus quitutes preferidos. Um desfile sem fim das mais variadas iguarias. E os sucos —feitos em casa— matavam a sede dos que eram avessos ao vinho e à cerveja. Parecia que todo mundo tocava algum instrumento e revezavam-se na noite para que todos pudessem brindar e dançar.

Terpsícore e seus pais mal saboreavam algum petisco e logo retornavam ao lar. Crianças não podiam permanecer nas festas além de um determinado horário. E o Major Zeca era rígido no cumprimento das leis.

Como era um militar achava que deveria ser o primeiro a dar o exemplo.

— Minha filhinha, vamos embora. Você tem uma vida pela frente para se divertir. Agora é hora de voltarmos para casa e descansar.

No dia seguinte, domingo, o tradicional almoço prolongado.

Mal saboreara a sobremesa Terpsícore subiu para o piso superior. Precisava ainda resolver os problemas de matemática da lição de casa, escrever sua redação e estudar os temas de história e geografia.

O Major Zeca ajudou a esposa a lavar a louça e arrumar a cozinha. Na salinha, ao lado, ele lia o jornal e ela, com seu tricô nas mãos, acompanhava o desenrolar dos espetáculos da tarde dominical no aparelho de televisão.

Como era o mês de junho as festividades juninas a todo vapor. Fogos de artifício a espoucar nos ares.

Major Zeca, sentado em sua poltrona, já dormitava. Mariana, a esposa, ria do jeito dele ressonar com o jornal cobrindo seu rosto.

— Você, quando cochila, não acorda nem com o ruído dos rojões lá de fora e nem com o aroma do café que acabei de passar.

A menina deveria estar absorta em meio aos seus livros e cadernos que não atendia ao chamado deles para descer e tomar o tradicional café com bolo das tardes de domingo. Ou pegara no sono.

Zeca subiu as escadas. Ela não se encontrava na salinha. Os livros e os cadernos arrumadinhos como quem terminara de fazer seus deveres.

Bateu na porta do quarto dela. Nada. Abriu-a. Lá ela não se encontrava. Foi ao banheiro. A porta, aberta. E nada de Terpsícore. Chamava por ela e nenhuma resposta ouvia. Até pensou que ela queria lhe dar um repentino susto aparecendo de súbito.

E então resolveu procurá-la no quarto deles.

O grito que ressoou de sua garganta atravessou os campos e foi ecoar nas serras distantes. Mariana calcou de dois em dois os degraus da escada imaginando que algo tivesse acontecido com Zeca. Encontrou-o ao chão, como se fora uma estátua de branco mármore. Olhos esbugalhados.

E então ela viu. Pela porta do quarto entreaberta ela viu o horror que marcou suas vidas pela eternidade.

O assoalho em mar vermelho transformado.

Os dois, paralisados, perderam totalmente o chão ante um caos nunca imaginado.

Lá, sobre a cama, o torso de Terpsícore estendido. Pernas a balançar no ar diante do grande espelho da cômoda. De seu tórax, borbotões de sangue ainda, em catarata, a escorrer.

Vizinhos ouviram o urro de Zeca. Solícitos, acorreram. E pasmos ficaram ao ver a trágica cena.

— Major Zeca! Precisamos avisar as autoridades…

— Não!!! Em minha filha ninguém põe a mão.

— Mas Major, é preciso.

Mariana não parava de chorar e a gritar por vingança. Chamaram um médico amigo que ministrou um forte calmante injetável no casal que parecia estar em transe.        

Amigos e colegas ao saber do trágico acontecimento acorreram para confortá-los.

Foi uma casa cheia de pessoas silenciosas que Lisa, sua mãe e sua irmã encontraram.

O dia amanheceu nevoento e gélido. Era preciso limpar o quarto onde todo o sangue de Terpsícore fora derramado.

A cabeceira da cama era de dura madeira. Dois buracos nela marcavam a trajetória das balas de grosso calibre. Que tiveram caminhos opostos. Marcas também na parede do quarto que dava para o jardim.

A arma era um Colt 45 que o Major recebera como prêmio em um curso que fizera há alguns anos nos Estados Unidos da América do Norte.

Deixava-o sempre em seu quarto, em cima do guarda-roupa. Foi encontrado caído ao lado esquerdo do corpo de Terpsícore. Em seu corpinho as balas também entraram pelo lado esquerdo. Ela era destra.

Suas pequenas mãos jamais abarcariam aquela arma…

Um caso que a perícia não conseguiu concluir.

Uma flor desabrochada ainda em botão. E duas pessoas que pela vida derramaram lágrimas sobre as flores do túmulo de sua menininha.

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