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abril

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2024

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Tragédia em alto-mar

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Uma tarde e uma noite inteira de angústia dentro do grande navio a vapor

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Marcelino, Thereza, Mamma Angela e o pequeno Enzo despediram-se para sempre de cada pinheiro, de cada galho, de cada folha, dos crepúsculos nas montanhas além, do amanhecer nas planícies, dos peixinhos do Adige, das frutas remanescentes em pomares quase desertos, dos campos desnudos, das andorinhas que voavam em torno deles como a lhes dizer adeus.

Foi um andar nostálgico carregado com a saudade antecipada e o sonho de uma vida melhor. Foi longa a viagem. Passaram-se muitos dias desde a saída da Vila de San Michelle.

Em uma triste tarde chegaram ao porto de Gênova. Deram adeus a seus animais. Nem poderiam pensar em vendê-los. Naquele tumultuado cais, com pessoas a transitar por todos os lados, quem compraria um velho carreto e três cansados animais? Acomodaram-se junto a seu veículo. Para alguns mendigos que por ali circulavam deram os cavalos.  Lombarda, sua vaca, permaneceria a seu lado até a hora em que fossem chamados para o embarque.

Mamma Angela chorava. Sentia-se velha para deixar sua terra. Thereza convenceu-a de que muito ainda ela poderia fazer em um novo país. Que muitos segredos de sua rica culinária tinha ela ainda a ensinar.

Na hora aprazada subiram para a embarcação. As cargas maiores foram levadas aos porões. Sob os beliches da cabine conseguiram colocar algumas malas e um pequeno baú.

Era preciso esperar que todos estivessem acomodados no grande barco a vapor. Documentos minuciosamente conferidos. Cargas e bagagens identificadas. No porto a agitação das manobras de carrinhos carregados de mercadorias. E um sem fim de pessoas que por lá circulavam procurando por alguém, despedindo-se dos que partiam e outras porque não tinham mesmo outra coisa a fazer.

Uma tarde e uma noite inteira de angústia dentro do grande navio a vapor. Ao amanhecer soaram os lúgubres apitos a anunciar a breve partida.

Repentinamente a embarcação transformava-se em movimentado formigueiro. Marinheiros a andar de um lado para outro. Ouviam-se curtos e agudos silvos. Grossas cordas amontoavam-se enrodilhadas no convés inferior. Escadas eram içadas. Pequenas pontes de acesso, recolhidas.

Na proa marinheiros amarravam os cordames do rebocador que levaria o navio até para fora da barra.

Três fortes e graves apitos foram aos céus acompanhados de rolos de vapor e fumaça emitidos pelas várias chaminés do grande navio que em breve deixaria o porto, deixaria Gênova, deixaria a Itália e um sonho que ficara enterrado pelos campos e colina.

Braços apoiados na balaustrada do convés ela olhava, pela última vez, o solo amado que a viu nascer. Sonhos deixados para trás. Sonhos de uma nova vida na pujante América, tão cantada e contada por aqueles que lá haviam já colocado os pés. Alguém como o seu Marcelino que na capital do Brasil estivera e retornara a sua terra com milhões de ideias para que sua família jamais voltasse a passar fome.

Nascera e pautara sua vida naqueles verdes campos sem fim do vale do Adige. Uma tenra grama que saciara a fome dos velozes corcéis da cavalaria de Napoleão Bonaparte nos tempos em que o intrépido corso invadira a, ainda, não unificada Itália.

Embalados na euforia de um novo nascer para as suas vidas juntaram os poucos pertences que lhes restaram depois que a luta pela sobrevivência em sua terra tornara-se uma luta inglória.

Era madrugada ainda quando as âncoras foram içadas e a massa fumegante do vapor das caldeiras começou a impulsionar a nave para o alto-mar. Lentamente, o navio distanciava-se do porto de Gênova e o Mediterrâneo, no seu todo, aos seus olhos despontava.

Movia-se a terra e o sol começou a aparecer num horizonte azul. O azul da infinita abóboda celeste a naufragar nas águas azuis do Mar da Ligúria. O mesmo mar azul que ela conhecera do lado leste de sua terra, o Adriático que inunda Veneza.

Embevecida com aquele inebriante azul que se encharcava com as cores do fogo que o sol projetava nas águas não percebeu alguém a seu lado. Apenas ouviu uma voz, em surdina, quase a tocar-lhe os ouvidos comparando seus olhos com a cor do céu, com a cor do mar. Foi um instante só para que seus olhos mudassem da placidez para a fúria e uma estrondosa bofetada deixou marcas na face do intruso que ousara tirar-lhe a paz daquela madrugada.

Indignada deixou suas divagações de lado e retornou ao camarim. Desceu, atabalhoadamente, as escadarias até abaixo da linha d’água onde estava alojada com os seus.

A gravidez de seu segundo filho fazia com que enjoasse muito e imaginara que um ar puro no convés vazio melhoraria suas angústias. Conhecendo muito bem a impetuosidade de seu Marcelino não ousou contar-lhe o acontecido. Mamma Angela já acomodara o pequeno Enzo no leito e colocara a bagagem sobre uma bancada ao lado dos beliches.

E o navio a vapor, lotado de imigrantes iguais a eles que na América vislumbravam uma vida melhor, singrava pelas águas do Mediterrâneo.

Desde o insólito amanhecer em que o furor dominou suas entranhas ela apenas circulava pelo convés de cima ao lado dos seus. Seu espírito, carregado de poesia, sentia falta das magníficas visões que eram os crepúsculos em pleno mar.

Os dias corriam com suas ânsias internas que lhe deixavam a cada dia mais pálida. Pouco se alimentava.

Na vastidão do mar a nostalgia a se abater nos passageiros. Melodias eternas que conheciam desde antes de nascer eram entoadas em toda a parte. Tarantelas, árias e coros de óperas e a bela Santa Lucia atravessavam os ares por onde singrava o navio. Atravessavam a alma dos imigrantes. Muitos músicos, com seus violinos e bandônions, suas guitarras e cítaras tentavam empurrar a melancolia que os abatia para as profundezas das águas.

Thereza deixou-se ficar por dias acomodada no beliche de sua cabine. Não saía mais nem para ver o sol. Marcelino encarregava-se de levar o pequeno Enzo e Mamma Ângela para o salão de refeições, para uma caminhada pelos conveses.

Numa destas andanças o cavalheiro que se aproximara de Thereza na madrugada em que o navio se afastava do porto de Gênova começou a agradar o pequeno Enzo. Presenteou-o com um pacote de bombons. E começou a jogar bola com ele. O menino ficou encantado.

Mamma Angela não gostava de ficar pelo convés a andar de um lado para outro. Pediu para voltar ao camarim. Precisava descansar. Marcelino acompanhou-a e tentou levar o filho com ele. O menino esperneou e teimou em ficar. O gentil cavalheiro prometeu cuidar dele até a volta de Marcelino.

Mas a bola nunca tem destino certo. Foi tudo muito rápido. O desconhecido, com um impulso descomunal, atira a pelota na direção do pequeno que, na ânsia em segurá-la, corre em direção à balaustrada do convés. A bola, estocada com tamanha força, atinge-o no peito, atirando-o para longe, por cima do peitoril.

Alucinado o homem joga-se nas águas. Atiram-se cordas. E o pequeno Enzo, que tinha apenas três anos de idade, junto com o desconhecido, foi morar para sempre no fundo da escuridão do mar.

O desespero e a dor tomaram conta de Marcelino e de Thereza. Culpavam-se, mutuamente, pela vida, que já não era mais vida, de seu pequenino filho. O primeiro filho deles. Nascido em Verona.

Seguiram-se dias e noites de angústia. Thereza voltou a aspirar o ar fresco das madrugadas andando a sós pelo barco a vapor. Pendurava-se na balaustrada do convés, olhos fitos nas espumas turbulentas das tempestades que se anunciam em pleno oceano. Quantas vezes pensou em atirar-se para dentro daquelas águas com o pensamento único de encontrar o seu menino. Urros de fera enjaulada eram os brados e os uivos que de seu eu saíam nestas noites sem fim.

Marcelino tentava amenizar a dor.

— Thereza, você precisa reagir. Em breve outro filho estará em seus braços. Você precisa ficar forte para aguardar a sua vinda. Ele virá preencher este vazio que agora se abriu à nossa frente. Vamos, meu amor, você precisa se alimentar, tomar um ar fresco, caminhar um pouco pelo convés.

Aos enjoos da gravidez adicionava-se o do movimento contínuo das turbulentas ondas do mar. E Thereza, a cada dia, mais forças perdia. Já não lutava. Marcelino acabou por desesperar-se também.

— Onde está aquela mulher cheia de viço e beleza, aquela mulher que sempre olhou a vida de frente, aquela mulher que me encantou desde a primeira vez em que a vi ao lado de seu carreto com a roda quebrada?

O médico de bordo tentava ministrar-lhe poções que a acalmassem. Ela a tudo rejeitava. Como fazer voltar para a vida quem da vida já nada mais queria?

— Só quem é mãe pode sentir e saber o que é perder um pedaço de seu eu…— Thereza, a soluçar, respondia a todos que tentavam consolá-la.

O navio continuou em sua rota a singrar as turbulentas águas do Atlântico Sul.

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