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A dialética da pobreza

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As primeiras ideias que me surgiram ao iniciar a leitura de Seara Vermelha, de Jorge Amado, foram: como passei toda minha formação acadêmica em Literatura sem ler essa preciosidade? E a outra consideração foi reafirmar um argumento já mencionado em meu texto sobre a trilogia “Os subterrâneos da liberdade”, a saber: quer entender a dinâmica histórica, social e econômica do Brasil? Leia as obras de Jorge Amado! E, claro, de Erico Verissimo.

Se você é fã de Literatura Brasileira, provavelmente já leu Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Os Sertões, de Euclides da Cunha. Pois Seara Vermelha é uma narrativa mais detalhista que a primeira e menos taxativa que a segunda, contando com o inigualável e sedutor estilo de enredo de nosso amado Jorge Amado (a repetição é proposital). Esse livro poderia, ou melhor, deveria substituir os enfadonhos manuais didáticos de História e ser lido nas aulas dessa disciplina. Certamente forneceria um panorama de nosso país e formaria egressos mais empáticos com as desigualdades sociais.

Jorge Amado vai ao âmago da pobreza do sertão, a qual faz com que seres paupérrimos se desloquem em uma jornada hostil em condições para além de insalubres, em prol de condições trabalhistas menos cruentas. No entanto, durante a peregrinação, as famílias se dizimam e os que sobrevivem se embrutecem a cada quilômetro percorrido. É impossível não se enternecer com os retirantes, e não se revoltar com a condição em que estão inseridos, quando nos deparamos com a descrição do bioma em que vivem:

Agreste e inóspita estende-se a caatinga. Os arbustos ralos elevam-se por léguas e léguas no sertão seco e bravio, como um deserto de espinhos. Cobras e lagartos arrastam-se por entre as pedras, sob o sol escaldante do meio-dia. São lagartos enormes, parecem sobrados do princípio do mundo, parados, sem expressão nos olhos fixos, como se fossem esculturas primitivas. São as cobras mais venenosas, a cascavel e a jararacuçu, a jararaca e a coral. Silvam ao bulir dos galhos, ao saltar dos lagartos, ao calor do sol. Os espinhos se cruzam na caatinga, é o intransponível deserto, o coração inviolável do deserto, a seca, o espinho e o veneno, a carência de tudo, do mais rudimentar caminho, de qualquer árvore de boa sombra e de sugoso fruto. Apenas as umburunas se levantam, de quando em quando, quebrando a monotonia dos arbustos com a sua presença amiga e acolhedora. [...] Por léguas e léguas, através de todo o Nordeste, o deserto da caatinga. Impossível de varar, sem estradas, sem caminho, sem picadas, sem comida e sem água, sem sombra e sem regatos. A caatinga nordestina. É através da caatinga, cortando-a de todos os lados, viaja uma inumerável multidão de camponeses. São homens jogados fora da terra pelo latifúndio e pela seca, expulsos de suas casas, sem trabalho nas fazendas, que descem em busca de São Paulo (AMADO, 2018, 53).

A última frase do excerto acima sintetiza um dos problemas-base da conjuntura brasileira, isto é: a concentração de terras e renda em contraste com a extrema pobreza. Ademais, o surto migratório para a capital paulista só fez aumentar as disparidades econômicas, na medida em que, numa sociedade despreparada para o acolhimento dos que sobrevivem à peregrinação desértica, os transformou de retirantes em segregados da metrópole.

O ciclo da miséria os acompanha ad infinitum, uma vez que, mesmo em outra região, a escassez linguística revela a seca entranhada: “Eram todos eles de poucas palavras, de curto vocabulário, e não sabiam se expressar bem, as palavras não revelavam quase nunca a verdadeira extensão dos seus sentimentos” (AMADO, 2018, p.97). Não há pior pobreza do que não dominar a linguagem, pois é essa habilidade que nos diferencia dos animais irracionais. Linguagem é poder, e não é à toa que a invasão e a colonização de um território se inicia com a imposição da língua dos dominadores e a proibição da autóctone.

Sem eloquência, o que resta aos nordestinos que chegam à São Paulo? Mendigar pelas ruas ou ter ofícios mal remunerados em condições ainda piores que as outrora enfrentadas. Como pode ser constatado, Jorge Amado evidencia o mal endêmico da pobreza, que não pode ser superada apenas com a vontade do cidadão, uma vez que é estrutural e é um projeto social, isto é, esse status quo é propício para a camada abastada.

Outro desdobramento da pobreza, também abordado em outras grandes obras sobre a temática, é o surgimento de entidades ditas santas mas que, na grande maioria das vezes, auxiliam na manutenção de uma sociedade maniqueísta:

Um dia, no fundo do agreste sertão, onde a fome mata os homens, os rios secos pelo sol ardente, os coronéis tomando a terra dos lavradores, mandando liquidar os que discutem, os imigrantes partindo em levas sucessivas para o sul, os cadáveres ficando pelas estradas, quando morriam crianças às centenas, e as que cresciam eram doentes e tristes, quando o impaludismo se estendeu como um manto de luto e a bexiga negra deixou sua marca mortal em milhares de faces, quando a febre tifo se alastrou que nem grama ruim, quando já nenhuma esperança restava no coração cansado dos sertanejos, apareceu o beato (AMADO, 2018, p.237).

E Jorge Amado não se limite a um recorte geográfico do Brasil, pois mostra que a pobreza está em todas as regiões: “[…] pensava que nada de mais desgraçado podia existir no mundo que a caatinga de secas e de fome. Na Amazônia, no coração da selva, ao lado dos grandes rios, vendo o povo nu, camponeses sem ter o que vestir, cortando os seringais, compreendia que a miséria era comum a todos eles, era a única coisa que existia com fartura em toda parte” (AMADO, 2018, p.295).

Dessa forma, reafirmo minha premissa de que é uma narrativa que deve ser lida em aulas de História, Geografia, Filosofia e Sociologia e, óbvio, Literatura, porque se inicia com os retirantes escapando da miséria do sertão para se deparar com a segregação citadina, fornecendo, assim, um panorama para exegeses sociais. Nesse ínterim, alguns se desvencilham e vão para outras regiões e, outros, se juntam ao Partido Comunista no intuito de lutar pela paridade econômica. Há, ainda, os que morrem na travessia: “No acampamento, de madrugada, os cadáveres estavam amontoados. Com o calor começaram a apodrecer. Os urubus vieram de toda a caatinga, cobriram o sol com seu negrume, foi tamanha escuridão que parecia que o mundo ia se acabar” (AMADO, 2018, p.270).

Jorge Amado é um dos escritores que mais entendeu os problemas do Brasil e os traduziu em forma de narrativas. Na supramencionada, sua genialidade está no ápice, desde o título criativo que sintetiza os paradoxos: um país que é uma seara de riqueza natural e fertilidade, mas que se cobre do vermelho do sangue dos que nele morrem indevidamente pela má distribuição de renda. Oxalá o vermelho possa, em um futuro próximo, ser do transbordamento do amor em uma nação que, sendo altamente rica, disponha de sua seiva para todos.

(AMADO, Jorge. Seara Vermelha. São Paulo: Claro Enigma, 2018)

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