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Retalhos Perdidos no Tempo

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Ditadura nunca mais!

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A literatura, e a leitura em geral, é transformadora. Não tenho dúvida disso. O conhecimento evita retrocessos, constrangimentos e salva vidas. Porém, para isso, é necessário uma premissa básica: ler. Por mais óbvio que seja, isto é, todos sabem, mas poucos praticam. Então, aqui registro meu apelo, aos que ainda não o fazem, para se dedicarem, sobretudo, à leitura literária e histórica, porque, ultimamente, muitos fatos têm sido distorcidos ao ponto de algumas pessoas clamarem pela volta de capítulos sombrios de nossa História.

De apenas uma distopia para o porvenir – ou seja, uma ficção baseada numa suposta sociedade cujo sistema é autoritário e degradante – isso passou a ser desejado por alguns desavisados.

Uma ótima sugestão para quem ainda tem dúvidas de que a Ditadura Militar Brasileira foi ignóbil, é ler Retalhos perdidos no tempo, da escritora colunista do JMais e médica canoinhense Adair Dittrich, a qual viveu e sofreu nos Anos de Chumbo. Há vários contos na sua obra, mas vou me atentar aos que discorrem sobre as atrocidades que ela e seus familiares padeceram nesse período sanguinário.

Em Medo do escuro dos porões, cuja releitura me fez chorar outra vez, relata a trajetória de seu irmão advogado que jovem fora trabalhar como defensor dos mineiros:

Foi para o sul de nosso estado. Um território que esnobava a riqueza de uns poucos. Uma riqueza que vinha do fundo da terra. Que vinha das escuras minas de carvão. Uma riqueza que ceifava a saúde, que ceifava a vida. Lá, ele não encontrou velhos nas praças brincando com seus netos nos dias de sol de primavera. Lá, ele não encontrou pessoas pelas ruas nas tardes de sábado. Porque o mundo da superfície era um mundo onde poucos perambulavam [...] Lá, ele viu pessoas que nunca viam a luz do sol. Que desciam para o interior das minas muito antes que o dia clareasse. E de lá só voltavam quando a escuridão da noite cobria os campos e as cidades (DITTRICH, 2019, p.196).

E, assim, os trabalhadores das minas de carvão desenvolviam a pneumoconiose e, em pouco tempo, faleciam. Aldo, que era advogado do Sindicato dos Mineiros da região carbonífera, tentou argumentar que as condições trabalhistas eram insalubres, mas pouco conseguiu. Em 1964, quando foi instaurado o Regime Totalitário:

[...] teve que procurar abrigo em lugares distantes. Porque ele tinha mexido no bolso dos poderosos que mandavam nas terras do carvão. Porque ele tinha ousado pôr mais que um pedaço de pão na mesa do mineiro que era o artífice da riqueza da região. Suas armas sempre foram a sua voz e a sua pena. E num triste dia, do qual eu não gosto de me lembrar, ele foi conduzido à prisão e torturado como se fora um pestilento cão raivoso. Com ele muitos outros companheiros da luta por uma vida melhor saíram dos escuros porões das galerias de carvão para os negros porões da ditadura. O crime de Aldo Pedro Dittrich foi apenas exigir que a lei fosse cumprida. Que fosse dado a cada indivíduo o direito de trabalhar e viver em paz (DITTRICH, 2019, p.197).

E finaliza a crônica justificando seu medo de que tudo torne a acontecer, o que me fez lembrar da primeira aula de História que tive na quinta série. Acredito que muitos irão se identificar: a professora daquele entrementes iniciava afirmando que estudamos a História Mundial para que os erros do passado não se repitam. Dessa maneira, muitos, claramente, não deveriam ter sido aprovados nesse componente curricular, pois querer que a Ditadura se repita é, no mínimo, absurdo e um atestado de desconhecimento histórico.

No próximo conto Dias negros que quero esquecer, a narrativa se adensa e Adair prossegue narrando sobre os desdobramentos que a perseguição ao seu irmão acarretou. Toda sua família sofreu, a casa foi invadida, seu irmão encarcerado, e os declararam personas non gratas ao governo militar. Sua mãe sofreu um infarto, seu pai, uma queda na qual fraturou o úmero e, assim, a volta de um câncer que o corroeu em poucos meses. Seu consultório, de ávida e eficaz médica, ficara vazio, pois muitos tinham receio de frequentar o estabelecimento de alguém que fora chamada no quartel. Além disso, seu salário foi cortado, e o de sua irmã, que era diretora da escola de Marcílio Dias, também fora bloqueado. Percebam todos os prejuízos físicos, psicológicos, profissionais e financeiros que uma família sofreu. Multiplique por milhares de pessoas que foram vilipendiadas e perceba a dimensão das consequências nefastas.

Para Adair, que relata em O medo do medo que contamina, além das lembranças traumáticas e das perdas supramencionados, uma das maiores incoerências que a acompanham e a torturam por anos é:

Com imensa tristeza muitas e muitas vezes li e ouvi que de agruras, prisões e torturas nos tempos dos anos cinzentos, os bons e os que trabalhavam, nem falar ouviram, que dirá por eles terem passado. Com imensa tristeza eu tenho que ouvir de pessoas estudadas, cultas que elas não foram presas e nem torturadas porque nunca puseram fogo em ônibus e nem assaltaram bancos à mão armada. Meu irmão Aldo, torno a repetir, tinha como arma apenas a sua pena e a sua voz. E, como Castro Alves, pregava a liberdade. E foi preso e torturado. Não me prenderam. Tentaram uma sutil tortura física. Mas a tortura atingiu em cheio toda a minha família das formas mais inimagináveis (DITTRICH, 2019, p.203).

Seu irmão fora absolvido da primeira acusação para, onze anos depois, ser novamente sequestrado e encarcerado em São Paulo. Adair teve que se deslocar para a capital paulista para falar com os algozes, que tentaram obrigá-la a assinar um documento como médica, atestando que seu irmão tinha uma grave úlcera no estômago e, por isso, fora operado. Ela não o havia visto, tampouco examinado. Até os mais desavisados concluem que se tratavam de escabrosas torturas que resultaram num estômago perfurado. Quando o viu, apenas confirmou:

Quase não conseguia erguer os braços para o fraterno abraço cheio de saudade. Fraqueza infinda, mesmo após mais de dez dias de pós operatório... e os punhos dele... e os tornozelos dele... Quatro chagas circulares abertas... Quatro marcas de algemas que cavaram profundamente sua carne... No abdômen, não apenas a marca longitudinal e reta do local onde fora efetuada a incisão cirúrgica. Outras por lá disseminadas e desenhadas nas mais variadas direções. Mas ele nada me contou. Não precisava (DITTRICH, 2019, p.208).

E por muito tempo ainda permaneceu como preso político, e outras vezes para lá Adair se dirigiu, sem poder vê-lo, apenas levar-lhe suplementos que, anos depois, descobriu que nunca foram a seu irmão endereçados, porque foram usufruídos pelos militares. Mesmo após ser libertado, as máculas se ampliaram na família. As lembranças amargas persistem e são difíceis de ser apaziguadas…

Mas resistiram, e, como diz minha confreira da Academia de Letras de Canoinhas: “Porque resistir continua sendo preciso” (DITTRICH, 2019, p. 214). Sobretudo em nossa conjuntura, para que as lembranças de Adair deixem de ser “retalhos perdidos no tempo” e habitem as mentes daqueles que não foram avisados de que qualquer ameaça à democracia deve ser imediatamente evitada! E aos que como eu, Adair e Aldo, usam a palavra como estratégia, convido-os a pesquisarem, escreveram e publicarem sobre essa problemática para formarmos um coro de pessoas que defendem a vida e a liberdade!

(DITTRICH, Adair. Retalhos perdidos no tempo. Canoinhas: JMais Publicações, 2019).

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