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abril

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Religião e política: uma combinação perigosa

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A política não pode ser tomada como uma guerra na qual grupo X representa a “suma bondade” e grupo Y o “lado do demônio”

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A partir da década de 1990, desenvolveu-se com força em igrejas evangélicas neopentecostais dos Estados Unidos algo que ficou conhecido como teologia do domínio. Tal teologia concentra seu foco, em linhas gerais, na guerra espiritual do bem contra o mal, ou de Deus contra o Diabo. Sendo assim, segundo tal perspectiva, constitui um dever do cristão lutar contra este último (o Diabo) e todos os seus artífices (que se espraiam no seio da sociedade terrena sob as mais diversas formas), destruindo-os, reconquistando os espaços que antes estavam em suas mãos e reconstruindo-os com bases e pilares cristãos.

Não tardou muito para que tal teologia logo fosse importada por igrejas neopentecostais brasileiras, e menos ainda, para que alçasse o plano da política institucional por meio de pastores e membros de congregações evangélicas que foram sendo eleitos para cargos políticos diversos. Na atual conjuntura, tal visão se expressa com força na campanha e nas falas do candidato à reeleição, Jair Messias Bolsonaro (PL), bem como na de seus adeptos e correligionários, que a todo momento enfatizam que as eleições deste ano serão “uma luta do bem contra o mal”. Chamar a atenção para esse discurso e para os perigos que ele representa à democracia e à política como um todo é o que pretendo na coluna de hoje.

Assinalo a palavra perigo em função do óbvio ululante: a política não pode ser tomada como uma guerra na qual grupo X representa a “suma bondade” e grupo Y o “lado do demônio”. Ela existe precisamente para ser o espaço das diferenças, da multiplicidade e da pluralidade. A política é (ou deveria ser) o espaço de encontro dos contrários, no qual se busca organizar e regular o convívio entre estes. Neste processo, é natural e positivo que haja no plano das ideias embates e debates, adversários e concorrentes. É justamente nisso que reside a vivacidade da política e da democracia. Daí os males da teologia do domínio aplicado a estas duas instâncias, afinal, ao levar a lógica belicosa de uma guerra santa para dentro delas, não há lugar para pluralidade, tendo em vista que só há espaço para um único projeto: o do “grupo do bem”, e o diferente não é alguém com quem eu tenha de conviver, mas destruir e silenciar. Ao se falar em guerra de bem contra o mal no campo da política, estamos a matar a própria política e seu sentido.

Longe de ser apenas mais um artifício retórico usado para conquistar o eleitorado cristão, este discurso, repetido a exaustão pelo presidente da República em toda oportunidade que lhe aparece, estimula alguns segmentos mais radicais de seu eleitorado que o tomam ao pé da letra a partirem para a violência política de fato, desencadeando episódios que no mais das vezes terminam em tragédia. Podemos citar, a título de exemplo, o lamentável incidente ocorrido em Foz do Iguaçu em julho deste ano, no qual o policial penal bolsonarista Jorge Guaranho matou a tiros o guarda civil municipal e tesoureiro do PT, Marcelo Arruda, ou ainda, o  mais recente, acontecido no dia 31 de agosto numa igreja da Congregação Cristã no Brasil (CCB), em que o policial militar e frequentador do templo, Vitor da Silva Lopes, baleou um outro frequentador, Davi Augusto de Souza, também por divergências políticas. A confusão neste caso começou com uma discussão após a vítima ter se manifestado contra uma fala do pastor que no momento pregava contra partidos e políticos de esquerda.

Para além da violência inconteste que contamina o cenário político, a redução e simplificação da política a uma guerra do bem contra o mal tira de cena aquilo que realmente deveria importar numa eleição, e que nada diz respeito a Deus ou ao Diabo, mas só e tão somente ao homem: os problemas que o país enfrenta e as medidas/propostas para saná-los. Com efeito, enquanto se disputa irracionalmente qual candidato ou partido representa o céu ou o inferno, esquece-se de discutir e problematizar as questões terrenas: como acabar com a fome que voltou a atingir milhares de pessoas? De que forma reduzir a alta de preços que hoje impera nos supermercados? Como gerar empregos? De que maneira combater a corrupção nos espaços públicos? Como corrigir as deficiências que o Brasil ainda enfrenta ne educação? Questões complexas e das quais pouco ouvimos falar quando o “debate” se perde no aspecto religioso.

Cumpre destacar, por fim, que não se está aqui a propagar que religiosos não possam participar da política ou defender pautas que lhes são caras. Evangélicos, católicos, umbandistas, espíritas ou adeptos de qualquer outra religião possuem todo o direito de participar da democracia, desde que respeitando seus limites e pressupostos. O problema passa a existir verdadeiramente quando a lógica religiosa já tantas vezes mencionada da guerra de bem contra o mal invade o plano político. As consequências disso, como já pudemos ver, são nefastas: ódio generalizado, autoritarismo, supressão do diálogo, pobreza de ideias e projetos. Não nos deixemos iludir, nessa guerra insana, perdemos todos nós.

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