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Queriam um genocida? Aí está um

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Putin ainda causará mais estragos, porque tem armas e sua mentalidade é a mesma dos czares

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Walter Marcos Knaesel Birkner*

Nota prévia:

A agressão à soberania da Ucrânia permite várias interpretações, a começar pela vitimação e morte de pessoas inocentes. Nada é tão importante e deveria encerrar discussões sobre o lado mal. Some-se a violação à soberania nacional. Daí, relativizar com o agressor torna-se insensato. Me impressiona que, conforme os circuitos relacionais de cada um, pessoas que, por certo, definiram o significado de ética ao longo da vida, apresentem argumentos reticentes quanto à de quem seja a culpa. Tergiversar sobre isso é um desrespeito ao povo ucraniano e a seus descendentes catarinenses, paranaenses e brasileiros mais. A culpa é do agressor e ponto final. Queriam um genocida? Aí está um.

 Então, com repúdio ao invasor e solidariedade eterna aos ucranianos, vamos à questão de fundo civilizatório: trata-se de definir o que é o Ocidente, em comparação com outros troncos civilizatórios e isso ajuda a explicar a iniciativa de Putin. É preciso encarar o fato de que as instituições ocidentais, sejam políticas, econômicas ou morais, são superiores, porque, ao longo do tempo, permitiram a autocrítica e geraram melhores resultados aos seres humanos.

Ditador, Putin invadiu a Ucrânia porque não admite que o vizinho se filie à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Este organismo de poder militar representa o acordo de não agressão e defesa mútua entre os atuais 30 países membros. Independente das justificativas do agressor, o problema é que ele viola o princípio da soberania de outro país. O governo da Ucrânia crê que estaria mais seguro na Otan, assim como a Polônia e outros países da Europa oriental.

Além do que é na prática, a Otan simboliza a civilização ocidental. Os símbolos são seus valores fundantes, quais sejam, liberdade, igualdade e fraternidade. Desenvolvidos ao longo de séculos, representam aspirações universais, conquanto tenha sido no Ocidente onde mais de expandiram. O culto a esses valores gerou ambientes que atraem proletários e elites de outros grupos civilizatórios, do que os imigrantes são o exemplo mais explícito.

Em 1989, o cientista político nipo-americano Francis Fukuyama publicou O fim da história…. A tese geral é de que, no pós-guerra fria, viveríamos o apogeu dos direitos humanos, da democracia e do capitalismo. Com isso, o resto do Mundo copiaria o Ocidente. Anos depois, Samuel Huntington, cientista político norte-americano, lançou Choque de civilizações. Em resposta a Fukuyama, advertia que o Mundo simplesmente voltaria ao lugar de sempre e que as novas guerras seriam culturais. Anos depois, as torres gêmeas caíram.

Dois livros que não se anulam entre si, ao contrário, ambos ressaltam a força das instituições ocidentais. Vinculadas por um curso evolutivo, geraram dois produtos institucionais notáveis, quais sejam, o Estado de bem-estar e de direitos e o livre mercado. Nem o primeiro é tão justo, nem o segundo tão livre, mas melhoraram a vida do proletariado interno. Por causa do aperfeiçoamento dessas instituições, o Ocidente atrai muito mais o proletariado externo e isso deixa governos autoritários e corruptos enciumados.

Putin não cansa de bradar que mentem a Otan, a Ucrânia, a imprensa, os políticos, enfim, “o Ocidente mente”. Obviamente, o governo russo também mente. A questão aqui não é a de quem fala a verdade e quem mente. A questão é que as mentiras do Ocidente são mais sofisticadas e sedutoras. No livro O dossiê de Odessa de Frederick Forsyth –que originou filme homônimo de 1974, um sobrevivente ucraniano do Holocausto dizia que, se numa guerra pudesse escolher entre as armas, que lhe dessem a palavra.

Isso é o Ocidente. Os compromissos históricos assumidos com a liberdade, a igualdade e a fraternidade geraram muito mais conhecimento, diversidade opinativa e busca irrestrita da compreensão e interpretação livre dos fenômenos. Com isso vieram as instituições políticas que temos, além da filosofia e da ciência. Ao contrário de outras civilizações, a liberdade de pensamento permitiu que hipóteses, verdades e interpretações diversas e sofisticadas viessem à tona.

A autocrítica nunca se desenvolveu tanto quanto nas nações do Ocidente. Na filosofia da história, por exemplo, Oswald Spengler e Arnold Toynbee apontaram os fatores de decadência das civilizações e que coincidiriam com as condições do Ocidente no século 20. Uma parte da tese de Toynbee sugeria que os impérios caiam quando o proletariado interno insatisfeito corroía por dentro – se consideramos a babel dos fanáticos nas redes sociais, isso pode ser um sintoma de decadência, sim.

Não obstante, é incrível como, autocríticos que foram, o alemão Spengler e o inglês Toynbee identificaram as causas da queda das civilizações. Mas é justamente a autocrítica, filha pródiga da liberdade no curso evolutivo ocidental, que nos permitiu – até hoje – quebrar o determinismo da história. A grande contribuição da Filosofia da História nunca foi a de prever o futuro, mas de autocrítica a corrigir erros. Cem anos após os anúncios de que o Ocidente “já era”, o Ocidente continua sendo o melhor dos mundos.

Não vislumbro evolução na ausência da liberdade. Ambientes autoritários restringem a busca pelo conhecimento, principalmente o humanístico. Impedem a existência salutar da autocrítica, exaltam a bajulação e levam ao nacionalismo mais tosco e ao obscurantismo religioso. Governos autoritários entorpecem a mente e obscurecem a visão de si mesmos, punindo a crítica e ignorando os alertas. Geram fanáticos e destroem a confiança e a ajuda mútuas, sem o que não há império que resista. Este será o fim de Putin, para que não seja o da Rússia.

É verdade que criamos nossos próprios monstros e democracia sem regras é mal presságio. Putin o percebe astutamente quando discutimos a validade ou não de pronomes neutros, da terra plana, da dupla incompreensão sobre o meio ambiente, do “meu corpo, minhas regras” etc. O que ele e muitos de nós, no entanto, ignoram, é que o Ocidente produz e reproduz, com a liberdade que nos é peculiar, a autocrítica. É isso que os governos autoritários não têm.

Putin ainda causará mais estragos, porque tem armas e sua mentalidade é a mesma dos czares, herdada pelos chefes comunistas que o educaram. Por essas e outras, a Rússia tem seu próprio proletariado interno insatisfeito. São pessoas de todas as idades, mas, principalmente, jovens inteligentes e aspirantes às liberdades que tornam o Ocidente mais sedutor. E nem falemos de economia, cujos interesses prevaleceram na geopolítica dominante nas últimas décadas, não sem muita lábia.

O governo russo tem armas suficientes para aniquilar o Planeta, a Otan também. Se um dos lados as usar, o outro lado as usará, e será o fim. É o que ninguém quer e evitá-lo já não depende de armas, mas de palavras, essas que utilizamos para fazer a autocrítica, usar de diplomacia e, através delas, expressar o valor da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Então, como dizia o personagem ucraniano de Forsyth, “se numa guerra eu puder escolher entre as armas, me dá a palavra”. É algo que o Ocidente soube cultivar melhor, inclusive para criar mentiras mais sofisticadas.

*Walter Marcos Knaesel Birkner é sociólogo

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