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abril

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2024

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Percalços na estrada

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Que desculpas você daria se o seu carro viesse em ala velocidade e não tivesse freios?

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Uma trilha já por mim demais conhecida. Trilha? Não, uma rodovia. Mas o trilhar por ela inúmeras vezes em um ano e por anos e anos seguidos transformaram-na para mim em uma simples trilha. Já retinha na memória todas as suas curvas, seus aclives e declives, as cidades e as vilas que ao longo dela se estendem, a mata ao redor e até os buracos e entraves do asfalto.

Era o tempo em que eu fazia a pós-graduação e especialização em Medicina Tradicional Chinesa – Acupuntura e todas as suas inerentes derivações e variações.

Minhas viagens, em sua maioria, tinham início no alto da colina encantada onde moro e terminavam na garagem do hotel em que eu permaneceria por uns três dias na, pelos poetas chamada, pauliceia desvairada.

Na madrugada, muitas vezes com a lua cheia ainda no alto a clarear a brancura das pradarias naqueles invernos de outrora, eu percorria os nossos catarinas caminhos indo ao encontro da rota principal que me levava ao destino final.

Era imprescindível que se chegasse antes das sete horas da manhã no trecho em que se inicia a descida da serra depois de Curitiba. Era a década de 1990 e a duplicação da rodovia andava em ritmo acelerado. Às sete horas iniciavam-se os trabalhos e de longe ouvia-se o ribombar das explosões de quilos e quilos de dinamite. Na primeira viagem após o início das obras ficamos lá parados por mais de uma hora. Liberada a rodovia permitia-se a passagem de apenas um veículo por vez, em quase câmera lenta e obedecendo a todas as orientações do pessoal que operava e fiscalizava o trânsito. Por isto o meu madrugar nas viagens subsequentes.

Certa vez as aulas seriam realizadas já na sexta-feira após o carnaval. Estava eu em meu repouso anual na deliciosa casa de praia de meus amigos e compadres Geraldo e Maria Regina São Clemente no Morro do Grant, entre Barra Velha e Piçarras. Saí já na quinta-feira para dormir em Joinville onde deixei toda a tralha veraneira e praiana.

Documentos do carro e carteira de motorista tinindo de novos e muito bem guardados. Acabara de renová-los.

Antes das sete horas da manhã estava eu transitando, lentamente, defronte ao posto da Polícia Rodoviária quando um simpático guarda faz sinal para que eu parasse. Com toda a gentileza pede-me os documentos. Na bolsa apenas a carteira nacional de habilitação. Vencida! E onde estariam os novos? Tive que colocar meu carro no estacionamento ao lado. E a revirar a bolsa e a frasqueira— naquele tempo usava-se este tipo de maleta, em forma de caixa, para transportar objetos de toalete e miudezas — e não encontrava os benditos —àquela hora já malditos— documentos.

Como eu disse, o senhor Guarda Rodoviário era muito simpático e gentil. Tendo em mãos minha carteira de identidade e a do Conselho Regional de Medicina pediu-me que aguardasse até a hora em que na Delegacia da Comarca de Canoinhas recebessem, via internet — imagine-se a lentidão destas comunicações pela tecnologia de informática da época —a confirmação de que eu era realmente eu e que havia renovado a minha habilitação para conduzir veículos a motor. Minha carteira de motorista dava-me direito até para conduzir uma motocicleta.

Já passava das nove horas da manhã quando, finalmente, fui liberada. Com continências, até! Prometi a ele que da próxima vez lhe levaria um presente de minha terra. Que poderia ser uma cuia com bomba e um pacote de erva-mate e mais a famosa cerveja Nó de Pinho.

— Moça… dona… quer dizer… doutora… nós não podemos receber presentes. Estamos aqui apenas para cumprir nosso dever e não deixar que meliantes passem ilesos.

Sorri após agradecê-lo efusivamente.

Meu hotel ficava na Alameda Campinas, uma das transversais da Avenida Paulista. Chegando lá a primeira coisa que fiz foi despejar o conteúdo de tudo o que eu tinha sobre a cama.

Do interior de uma grossa agenda caem os meus famigerados documentos renovados.

Foi o tempo de um rápido banho, arrumar-me devidamente, pegar minha pasta com livros, cadernos e aquela parafernália toda e correr para o curso que ficava depois do cemitério da Avenida Dr. Arnaldo.

O curso findava em torno das treze horas do domingo. E de lá mesmo parti rumo ao sul. Precisaria passar em Joinville a fim de pegar as indumentárias de verão que lá haviam ficado.

E não é que no primeiro posto da Polícia Rodoviária, logo que entrei na Regis Bittencourt, o guarda acenou-me para parar.

Mandou-me entrar no que agora eu já chamava de cercadinho. Não entendi. Quer dizer, fiz de conta que não entendi. Todo sorridente, antevendo a minha frustração, pediu-me os documentos.

Eu já os tinha todos na mão. E com a cara mais inocente e parva do mundo entreguei a ele. E ainda lhe perguntei:

— O que houve, senhor oficial? Estão atrás de um carro igual ao meu que foi roubado?

A vermelhidão tomou conta do rosto e pescoço do pobre homem que, sem saber como desculpar-se, me liberou de imediato.

Não nego que de lá saí, com a janela aberta, dando uma sonora gargalhada.

Era fevereiro. Era verão. A viagem fluía prazerosamente. Estava eu já no Vale do Ribeira. Fizera uma deliciosa parada em uma casa de chá que para mim era a própria “Casa de Chá do Luar de Agosto”. (Lembram-se do filme? Dirigido por Daniel Mann e estrelado por Marlon Brando, Machiko Kyô e Glenn Ford?). Um delicioso sanduíche e um guaraná revigoraram-me. Não havia almoçado. Nos tempos de calor era sempre um guaraná e nos tempos de frio um forte e bem preparado café.

Rodava tranquilamente. Já devia estar lá pelas alturas de Cajati. Logo viria a serra e mais adiante o grande planalto curitibano. Ao longe avistei os carros parados com as lanternas traseiras a piscar. Diminui a velocidade e parei a uma distância regulamentar do carro à minha frente. Eis que, de repente, alguns minutos depois, vejo, através do espelho retrovisor um carro de pequeno porte a chegar voando. Foi o tempo de ligar o motor e tentar, em desespero, levar o meu para o acostamento. Não deu tempo. Além de me acertar na parte posterior ainda fui empurrada e, se não tivesse já esterçado teria acertado o da frente.

Todo mundo a voar para fora dos seus veículos. O atordoado motorista do que me bateu pedindo mil desculpas. Que desculpas você daria se o seu carro viesse em alta velocidade e não tivesse freios? Era o caso dele. Parente das pessoas do carro que estava adiante de mim. Aparentemente não se percebia nenhum dano em meu Tempra novinho. Tudo bem. Tudo em paz. O moço do carrinho que me bateu morava já em Campina Grande. Seguimos viagem.

À noite, já em Joinville, na casa de meus amigos Regina e Geraldo fui pegar minha mala no carro. Tive que forçar o porta-malas para abri-lo. E não mais foi possível fechá-lo. Ficou com a tampa abanando ao léu. A realidade era bem diferente do que, às pressas, olhamos com olhares leigos em mecânica.

Na manhã seguinte, em vez de retornar a Canoinhas, dar primeiro uma passada na Concessionária. Um dia inteiro e muitos reais depois estava eu a subir a serra Dona Francisca no rumo de minha encantada colina no Alto das Palmeiras desta contagiante e amável terra minha.

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