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Percalços de uma viagem

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A locomotiva, soberba, puxando uma dezena de vagões lotados de carga e passageiros, deslizava, incólume, pelos trilhos

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O comboio serpenteava, lentamente, através da floresta coalhada de tílias e pinheiros que balouçavam ao vento daquela manhã primaveril. Entre a leitura de um livro e o deslumbramento que tomava conta de seu eu ao vislumbrar as encantadoras paisagens, corriam as horas.

Nas estações dos pequenos vilarejos o trem ficava por poucos minutos. Mal havia tempo para algum passageiro descer e outro embarcar. Os estafetas do carro-correio corriam a deixar seus malotes e a pegar outros. Sempre alguma bagagem enviada para pequenos comerciantes, estalajadeiros ou fazendeiros precisava ser desembarcada enquanto outros ferroviários, às pressas, jogavam novas mercadorias que seguiriam viagem.

Muitas paradas para que a locomotiva pudesse ser reabastecida com água e lenha. Providência necessária para que não ficasse inerte no meio do caminho.

Perto do meio dia chegaram a uma grande cidade onde havia um entroncamento. Comboios vindo de outras direções ali se cruzavam. Um ponto estratégico onde funcionava um restaurante ao lado da estação ferroviária. Enquanto as máquinas faziam suas manobras havia tempo suficiente para que os passageiros pudessem fazer suas refeições. O casal e as crianças, companheiros de cabine de Rolf, chavearam seus pertences. Estranharam vê-lo acomodado em seu lugar junto à janela.

— Amigo, é hora de nos alimentarmos e tomarmos uma bela cerveja no restaurante da estação. Dizem que não se deve perder a chance de saborear a refeição que aqui é servida.

Rolf sentiu uma vermelhidão subir em suas faces. Não sabia como explicar que trouxera seu farnel em um pequeno bornal e que não teria condições de pagar pelo almoço.

— Obrigada, meu senhor, mas não estou me sentindo muito bem. É a primeira vez que viajo de trem. Tenho até vergonha de dizer, mas a fumaça e o odor que da queima da lenha chega até aqui dentro do vagão estão me deixando nauseados. Mesmo há pouco menos de duas horas comi uma maça que o moço do trem estava vendendo. Acho que vou ficar por aqui. Cuidarei de suas bagagens. Não se preocupem. Bom apetite,

Mal os amigos desembarcaram, Rolf abriu sua mochila de onde retirou seu frühstück. Ao colocar uma salsicha dentro de duas fatias de broa chegam os encarregados da limpeza. Solicitaram, gentilmente, que Rolf saísse. O vagão precisaria ser esvaziado para que o serviço fosse realizado a contento.

Contrariado pegou sua bagagem de mão, desembarcou, logo encontrou uma árvore e sob sua sombra se sentou. Enquanto fazia seu lanche viu que a composição em que viajava começava a deslocar-se, lentamente, para longe da plataforma principal. A primeira coisa que pensou foi em seu violino. Que se perdesse a sua roupa, que se perdessem os mimos que levava de presente para sua família. Mas o seu violino? Ainda com as mãos lambuzadas correu até a sala principal da gare. Procurou pelo homem do quepe vermelho, a autoridade mais importante dali.

— Não meu filho — foi falando, calmamente, o agente da estação. Estamos em manobra. Alguns vagões que faziam parte do comboio em que você estava seguirão com seus passageiros em sentido norte, outros para o oeste. E vice-versa. Os que chegaram do norte e do oeste seguirão para o sul e para o leste. Aqui é um cruzamento muito importante. Dentro de duas horas a composição que irá com destino a Innsbruck estará aqui nesta plataforma. Ande por.ai. Deleite-se com as belas raparigas que se exibem pelas ruas adjacentes. Tome uma cerveja. Divirta-se. Aproveite a vida.

Rolf imaginara que no decorrer daquela espera poderia pegar seu violino e treinar por um bom tempo. Ainda bem que colocara o livro na bagagem de mão que portava com ele. Retornou à sombra da mesma árvore. Envolveu-se, por algum tempo, com a leitura, mas logo o sono tomou conta de sua mente. Acordou, subitamente, com o vapor de uma locomotiva sendo jogado, com ímpeto, em sua direção. Não sabia se se encontrava em uma casa de banho turco ou se o haviam jogado para dentro de um caldeirão fervente. Levantou-se de um salto. Foi o tempo de pegar sua mochila e jogar-se para dentro do primeiro vagão à sua frente. Nem olhou as placas. Caminhou pelos corredores do começo ao fim e não encontrou sua bagagem e nem a dos amigos de viagem em nenhuma das cabines. Desembarcou alguns segundos antes que aquela composição partisse em sentido contrário ao seu.

Resolveu esperar agora, calmamente, em um dos bancos da plataforma. Não demorou para chegar o seu comboio. Acomodou-se na sua cabine e logo entraram os companheiros de viagem com os braços carregados de guloseimas e souvenires que compraram nas adjacências da estação.

Em uma viagem de trem, nos meados do século XIX, tudo poderia acontecer. As ferrovias eram novas. Pontilhões e viadutos construídos com perfeição. Locomotivas e vagões novíssimos e reluzentes. Mas os imprevistos poderiam ocorrer após a próxima curva.

Grossas nuvens negras formavam-se no horizonte além, Ventos uivavam vergando árvores. Campônios que viviam nas cercanias da ferrovia corriam com suas carroças e seus cavalos na ânsia de defender da fúria prevista os seus animais e a sua própria vida também.

A tarde avançava pelas encostas. Pelos cálculos do chefe de trem, se tudo continuasse a correr bem como até aquele ponto, talvez até as duas da madrugada chegassem no ponto final da viagem.

Bem melhor, pensou Rolf, do que os dois dias previstos anteriormente. Em outra grande cidade o comboio fez outra parada para que os passageiros pudessem jantar. Foi curto o tempo de espera. Logo a viagem prosseguia normalmente.

A locomotiva, soberba, puxando uma dezena de vagões lotados de carga e passageiros, deslizava, incólume, pelos trilhos. Em meio à tênue escuridão que, em pleno dia, quase envolvia a terra, surge, a uns cem metros adiante, um desesperado turmeiro — um dos encarregados de cuidar da linha férrea — a balançar, freneticamente, uma colorida lanterna a querosene com uma das mãos, enquanto com a outra desfraldava uma grande bandeira vermelha. O maquinista, de olho sempre firme da ferrovia em frente, foi freando lentamente. Parou a composição bem ao lado do ofegante rapaz. As notícias não eram nada alvissareiras.

A tempestade que se prenunciava naquele trecho já havia feito o seu estrago uns dois quilômetros adiante. Caíra uma barreira, com uma largura de uns dez metros e estava a atravancar a linha. Turmeiros foram chamados de várias estações a fim de desentulharem a linha. Um serviço que levaria horas.

A ordem recebida era para que o maquinista, com o máximo cuidado e vigilância, retornasse para a estação anterior. Pelo menos lá os passageiros poderiam acomodar-se na estação ou em algum hotel enquanto aguardariam a desobstrução da via férrea.

Um dos manobristas alojou-se na plataforma do vagão que se situava na traseira da composição e com uma lanterna emitia sinais luminosos ao maquinista.

Seguir de ré, mesmo sobre os trilhos, requeria exímia aptidão e frieza por parte do maquinista. Além disto não seria possível, com esta marcha desenvolver a mesma velocidade. Com sucesso, estacionou a composição junto à plataforma da cidade que algumas horas atrás, felizes, haviam deixado.

Correria para a sala do telégrafo. Precisavam enviar telegramas aos seus avisando que tão cedo não chegariam em seu destino.  A solução era procurar um canto e aguardar, com paciência, as notícias de reinício da viagem.

Desta vez Rolf desembarcou não apenas com sua mochila, mas com seu violino também. Acomodou-se em um canto de uma das salas de espera da estação ferroviária. Alimentou-se. Tomou um bom copo de água. Tirou o violino do estojo. Afinou-o. As partituras encontravam-se na mala que ficara dentro da cabine, no vagão. Como já sabia tocar, de ouvido, a Grande Sinfonia de Schubert, assim iniciou seu ensaio em meio à multidão que por ali circulava. Logo alguns curiosos aproximaram-se. Foi então que o seu companheiro de cabine por ali passou com sua família. Aproximou-se. Abriu o estojo do violino de Rolf e colocou nela alguns shillings. Logo os demais transeuntes seguiram seu gesto. E pedidos para que solasse outras melodias.

Pelas cordas de seu violino Rolf embeveceu o público com a Serenata de Schubert e com demais melodias folclóricas e tradicionais daquela região.

Quando o agente da estação apitou chamando todos para o embarque o nosso violinista correu até o restaurante e conseguiu comprar, com o dinheiro arrecadado uma suculenta galinha recheada e uma sacola de frescas e quentinhas broas para saborear dentro do trem. E muitos níqueis sobraram ainda.

No resto da viagem Rolf ficou a imaginar–se um músico popular a solar seu violino pelas ruas de Viena.

(Trecho de um livro em elaboração)

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