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Os cargos comissionados e a constituição

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Entre o teórico e o prático

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Izadora Caroline da Silva Andrade*

Os cargos na administração pública que são preenchidos sem concurso público, possuem a sua justificativa na premissa de que, em contextos específicos, é necessário inserir pessoas de confiança do governo, que é transitório, e que essa confiança não se poderia esperar de qualquer um que estivesse a ocupar o cargo de modo efetivo, com estabilidade, tendo sido aprovado em concurso público.

Em alguma medida, tal configuração na nomeação para o serviço na administração pública tem se projetado, na prática, como uma oportunidade para acordos políticos. Em troca de apoio político em votações, se nomeia ou se mantêm indicados do apoiador em postos no serviço público que, se forem postos estratégicos, possuem acesso privilegiado de decisões e informações. Contudo, mesmo quando não se tratar de postos estratégicos, em última análise, pode se tratar de, ao menos, remuneração mensal paga pelos contribuintes ao indicado, mesmo sem que o funcionário temporário tenha sido aprovado em um concurso público, por vezes mesmo sem que o indicado tenha nenhuma qualificação específica para o cargo que vem a ocupar.

A Constituição Federal menciona percentuais mínimos para que esses cargos sejam ocupados por servidores de carreira. Contudo, apesar de haver algumas normas no sentido de colocar em pauta quais são esses percentuais mínimos em nível de União, a brecha se amplia para outros níveis da administração pública, criando disparidades que têm sido objeto de análise do Supremo Tribunal Federal.

Diga-se de passagem, que com o Projeto de Emenda Constitucional da Reforma Administrativa em curso (PEC 32/20), não se prevê mais um percentual mínimo de servidores de carreira para serem nomeados em cargos de confiança ou comissão, que passam a se chamar “cargos de liderança e assessoramento”, incluindo entre os cargos indicados, isto é, sem concurso, até mesmo funções técnicas.

Conforme decisão do STF em Recurso Extraordinário (RE1041210): “o provimento de cargo em comissão, sem prévio concurso público, é medida excepcional que somente tem lugar em funções de direção, chefia e assessoramento que demandem especial relação de confiança entre governante e respectivos subordinados”.

A origem histórica dos cargos comissionados vem da herança de um Brasil ainda colônia dominado pela administração da Coroa Portuguesa e suas capitanias hereditárias, que, mesmo sofrendo ruptura após proclamada a República, foi base da instauração da nova forma de governo republicano; rompendo, portanto, com o Império, mas ainda não sendo possível romper com o sistema administrativo vigente.

Sendo a modificação da configuração administrativa da nova República um processo lento, a herança deixada pelos portugueses se perpetuou, apenas sofrendo alterações ao longo dos anos, de forma a adequar-se aos contextos sociais, através das compilações das leis que originavam os novos ordenamentos brasileiros. Por consequência, pode-se caracterizar os cargos comissionados como herança do patrimonialismo.

A origem dos cargos comissionados no Brasil é, portanto, ainda mais antiga que a origem dos cargos públicos que exigem aprovação prévia em concurso, tendo esses últimos se incluído no ordenamento apenas na Constituição Federal de 1937, no Governo de Getúlio Vargas, e tornando-se obrigatório, excetuando-se os cargos em comissão somente 30 anos depois, na Constituição Federal de 1967.

A implementação do requisito para tornar-se servidor público, foi um marco que não só proporcionou a estabilidade dos servidores, garantindo a isonomia e a impessoalidade, princípios básicos da administração pública (Art. 37 da CF/88), mas também pode-se dizê-la como sendo estratégia do constituinte de combate à corrupção, se premunindo contra os excessos que se arrastaram ao longo da história.

Após a implementação da exigência de aprovação em concurso para preenchimento de cargos públicos, entende-se que essa tornou-se um dos princípios constitucionalistas que integram as políticas públicas de empregabilidade, sendo acessível a todos os brasileiros e estrangeiros observados os requisitos legais.

Assim, para preservar os cargos comissionados mesmo após a obrigatoriedade dos concursos, criou-se a justificativa de uma necessidade de manter cargos de confiança do gestor público para melhor administração. Os cargos em comissão que, hoje, só da União somam em torno de 90 mil, podem ser preenchidos por qualquer pessoa, sendo de livre escolha do gestor público, respeitando os limites legais.

A dependência de apoio político faz com que a troca de favores não seja incomum, podendo levar os cargos comissionados a serem usados como moeda de troca, cargos esses que por entendimento do STF deveriam valer-se de especial relação de confiança.

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou junto ao STF em 2017 uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 44), requerendo medida cautelar ao STF para que fixasse prazo a fim de que o legislativo regulamentasse o percentual mínimo para cargos de comissão e confiança, que devem ser ocupados por funcionários de carreira. Segundo o Conselho, o constituinte delegou ao legislador ordinário a função de fixar a porcentagem, mas a matéria nunca foi prioridade do Congresso Nacional. A norma permanece omissa, resultando na disparidade entre os números de funcionários comissionados e o número de efetivos.

A exemplo, o Conselho citou a Câmara de Vereadores da cidade de Blumenau, que empregava 42 funcionários comissionados de um total de 67. Citou também o Estado de Tocantins, em que uma lei foi elaborada para a criação de 28.177 vagas, sendo que 28.098 das vagas eram comissionadas. Em ambos os casos, o STF julgou pela inconstitucionalidade, baseando-se na violação dos princípios básicos da administração pública como a moralidade, a isonomia e a impessoalidade.

Desse modo, percebe-se que, quando o inciso V do art. 37 da CF menciona os “percentuais mínimos previstos em lei”, e, esse percentual não é regulamentado, abre-se uma brecha que está sendo explorada pelas múltiplas esferas políticas que compõe a União, se projetando como um problema de conciliação entre premissas constitucionais e a prática política cotidiana.

Pode-se concluir que, para além da justificativa compreensível da configuração de inserir no serviço público pessoas de confiança do governo, transitório, em postos chave da administração, em alguma medida essa brecha tem se mostrada alargada propositalmente, servindo como moeda de troca para apoio político, e/ou, ainda, em postos que não demandam necessária relação de confiança entre o gestor e o servidor.

Além de um desvio da Constituição e dos princípios da administração pública, o que seria problemático por si, na prática, com isso, pode-se trazer prejuízos à administração pública pela ausência de especialidade do servidor indicado e pela rotatividade dos servidores temporários, além da ausência de segurança (pela ausência de estabilidade) para exercer de modo pleno suas funções.

A premissa de concursos públicos tem se mostrado relevante para que todos tenham a possibilidade de concorrer às vagas de carreira, bem como, a estabilidade do servidor pode ser entendida como significativa para que a função do cargo seja exercida tal qual prevê o sentido existencial da criação do cargo, para além de pressões políticas e ameaças de demissão caso o serviço seja feito corretamente e isso venha a afetar pessoas em situações de poder de admitir e demitir os servidores públicos.

*Izadora Caroline da Silva Andrade é acadêmica do Curso de Direito no Centro Universitário Presidente Tancredo de Almeida Neves

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