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O segredo no estojo do violino

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Vira o nascer e o ocaso de muitos sóis. Tempestades de neve que o fizeram permanecer em casa por muitos e muitos dias

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Histórias de sua vida o velho patriarca foi, aos poucos, contando para Rolf que, quieto a seu lado, a tudo ouvia atentamente. Gustav conhecia todos os cantos e recantos em torno do vasto território em que vivia. Desde jovem percorrera, a pé, todos aqueles sítios, desde o sopé da montanha até o seu cume. Vasculhara as encostas de todos os montes circunvizinhos. E tesouros encontrou naquelas andanças todas. Tesouros em plantas medicinais das mais variadas espécies. Tesouros em pedras preciosas. Tesouros nas novas paisagens que vislumbrava a cada nova caminhada.

Vira o nascer e o ocaso de muitos sóis. Tempestades de neve que o fizeram permanecer em casa por muitos e muitos dias.

Vira o nascer de seus filhos e os dos filhos de seus filhos. E dos netos de seus netos. Não sabia dizer se era um ser abençoado por ainda estar perambulando pela face da terra, mesmo que fosse um perambular em cadeira de rodas… Ou se havia deixado muitas dívidas a serem pagas ainda nesta vida. Mas a única certeza que ele tinha era algo que ficava bem no fundo de seu coração. Sabia que precisava proteger Rolf. Sentia também o que Rolf sentira.

Depois de muito falar pediu a Rolf que lhe trouxesse uma garrafa de cerveja.

— Preciso refrescar a boca e a memória.

Após deliciar-se com o dourado líquido, continuou a derramar suas histórias. Quando achou que havia já inteirado Rolf de tudo o que era mais importante, disse-lhe ser chegada a hora de ir buscar o velho violino que se encontrava sobre o grande piano de cauda que ficava no salão.

Rolf saiu pensativo do quarto de Gustav, tentando entender as metáforas todas daquela longa explanação. Quando estende as mãos para pegar o estojo que guardava o tão precioso instrumento foi, subitamente, interrompido por uma autoritária e desconhecida voz.

  — Não basta o seu violino, precisa agora se apossar da nossa mais cara herança?

Era a voz rouquenha do mais novo de seus tios. Talvez um ano mais novo que seu pai. Rolf, de imediato, retirou a mão da caixa. Seu corpo tremia inteiramente. Não ousou retrucar. Considerou que o seu silêncio falaria por si. Também não retornou aos aposentos de Gustav. Não queria que ele percebesse, pela cor de suas faces, o que estava remoendo em seu interior. Foi ao seu quarto. Arrumou suas coisas. Encontrava-se na soleira da porta com sua mochila no ombro, a mala em uma das mãos, seu violino em outra, quando ouviu os leves passos de Sophie às suas costas. Imaginava ir embora sem se despedir de ninguém. Não lhes contaria as razões de sua intempestiva saída.

— O que aconteceu meu filho? Por que suas bagagens em suas mãos?

Foi só então que Sophie reparou no coche de Bernard estacionado do lado de fora, junto à grande porta de entrada. Imaginou que o pior deveria ter acontecido. Seu coração de mãe balançava entre o amor que devotava a seus filhos e o imenso carinho que sentia pelo neto prestes agora a ir embora para sempre.

Rolf nada respondeu. Largou a bagagem no chão. Abraçou carinhosamente a avó e em lágrimas lhe respondeu:

— Vó Sophie eu já nasci relegado por todos. Nem sei como, nos tempos em que aqui vivi com vocês não fui enxotado. Talvez não percebesse por ser ainda muito criança. Mas desde ontem notei que os tios e os primos não toleram a minha presença nesta casa. Por isto é melhor eu ir embora antes que alguma tragédia aconteça.

Nisto Franz se aproximava e ouviu as últimas palavras de Rolf.

— Não meu neto. Você não sairá daqui assim desta forma. Sua saída intempestiva fará um grande mal ao nosso velho Gustav que tanto sonhou e pediu a sua vinda. E quem manda nesta casa depois de meu avô sou eu e ninguém mais. Peço perdão pelas palavras que deve ter ouvido de seu tio Bernard. Ele não tinha e não tem nenhum direito de falar o que falou. Eu já vou interpelá-lo e afirmar a ele e a todos os demais que você tem tanto direito de estar aqui quanto eles. Você é filho de meu filho. Por favor, esqueça o que ouviu de seu tio. Recoloque a sua bagagem em seu quarto. E atenda ao pedido de vô Gustav.

— Vô Franz, eu não quero ser o pomo de discórdia nesta família. O melhor que tenho a fazer é retornar para Viena e continuar com meu trabalho e meus estudos. Não conseguirei permanecer aqui sabendo que sou indesejado por todos.

— Rolf, acabei de lhe dizer que o dono de tudo ainda é meu avô Gustav e faremos a vontade dele. Ele quer você aqui. Não acelere a morte de meu avô, por favor. Por ora faça o que ele lhe pediu.

A contragosto Rolf atendeu ao conselho do avô. Retornou a seu quarto e recolocou suas coisas em seus lugares. Voltou ao grande salão. Tomou em suas mãos o estojo do velho violino e dirigiu-se, uma vez mais, aos aposentos de Gustav.

— Ah! Finalmente você voltou com o estojo. O que houve no salão? Ouvi vozes alteradas. Não consegui distinguir o que diziam. Mas era uma voz conhecida que falava muito alto, quase gritando…

— Nada não, vô Gustav… O senhor deve ter confundido com o grasnar dos gansos no quintal…

— Está bem. Vou fazer de conta que acredito. Grasnar dos gansos… — E soltou uma sonora gargalhada. Mas vamos ao mais importante. Abra logo este estojo. Já mandei chamar o Franz que será nossa testemunha.

Sob os olhares dos dois velhos Rolf abriu, com todo o cuidado, o misterioso estojo. Retirou de dentro o antigo violino. Seguindo as orientações de seu trisavô removeu o forro. Sob aquele fundo falso, um grande envelope com vários documentos. Rolf abriu-os. Pediram que lesse, com calma. Arregalou os olhos como a inquiri-los sobre o que significava tudo aquilo.

— Sim, meu neto — foi explicando Franz. Nestes documentos que Gustav mandou preparar, minuciosamente, há muito tempo está o quinhão que lhe cabe. Você é filho do meu filho que tão precocemente nos deixou. Esta é a escritura de uma casa que se situa em um dos anéis de Viena. Não é um palacete, nem uma suntuosa mansão. Mas lá você poderá morar com a família que constituir um dia. Junto há uma carta que você deverá mostrar ao caseiro que lá se encontra e está cuidando do patrimônio que já é seu.

Rolf não conseguia balbuciar palavra alguma. Depois de uma pausa para tomar uns goles de água Franz continuou.

— Este outro documento prova que você é dono de uma pequena área nesta propriedade. Para não causar dissabores para os demais escolhemos um terreno em que nada pode ser plantado. Um terreno pedregoso situado a uns mil metros acima de onde estamos. Você deverá ir até lá, sozinho, amanhã bem cedo e seguir as instruções que neste papel se encontram.

— Vô, eu não posso aceitar nada disso. Até porque não terei condições de pagar pela manutenção de uma casa em Viena.

— Filho, vovô Gustav já resolveu tudo. Amanhã, ao raiar do dia você saberá os detalhes. Você deverá levar junto uma pá e uma picareta além dos demais utensílios para escalar um trecho da montanha. Até um determinado ponto poderá seguir a cavalo.

O dia não havia raiado ainda e Rolf já se encontrava no lombo de um brioso corcel. Ao lado troteava a mula de estimação de Franz carregada com todos os apetrechos. À luz opaca do amanhecer leu as instruções e o rumo que devia seguir em um minucioso mapa.

Sentiu, mais do que escutou, na distância, o ruído de cascos de cavalo. Quando parava, cessavam os sons.

— Deve ser o natural eco da montanha… 

Mas a ressonância não seguia o mesmo ritmo de sua montaria. Continuou seu caminho. O sol ia alto quando alcançou seu objetivo. Encontrou uma pequena cruz de ferro marcada no mapa. Apeou. Pegou a picareta e deu início a uma escavação. Logo o instrumento bateu em uma caixa de ferro. Com esforço colocou-a à beira da reentrância que fizera no solo. Abriu-a. Somente pequenos seixos rolados em seu interior. Foi então que ouviu uma sonora gargalhada bem a seu lado. Era Bernard, o tio que o interpelara na véspera.

— Então pensavas que irias encontrar um tesouro? Um tolo enganado. Teu ouro transformou-se em pedras…

Às gargalhadas, foi caminhando de costas, meio encoberto pela névoa da madrugada que a montanha envolvia. Não deve ter percebido que se encontrava na beira de um precipício. Nem ouviu o grito de Rolf para que voltasse. Apenas um uivo de dor ressoou nas encostas. Um uivo repetido entre os paredões de pedra por uma dezena de vezes.

Rolf voou até junto das montarias conseguindo trazê-las o mais próximo possível do local em que Bernard despencara. Pode vê-lo bem mais abaixo, agarrado a um tronco de uma árvore seca. Atirou uma comprida corda com um laço em uma das pontas. Quando viu que a vítima conseguira envolvê-la em seu corpo amarrou a outra extremidade no cavalo. Lentamente conseguiu trazê-lo até a superfície. Largou todas as tralhas que trouxera ao lado da caixa de seixos, a fim de colocar o ferido sobre o lombo da mula. Quando Rolf jogou toda aquela bagagem ao solo, o recipiente de pedras virou de lado. Só então ele percebeu um grosso envelope bem no fundo. Guardou-o em um bolso interno de seu capote. Nem se deu ao trabalho de saber do que se tratava pois a urgência maior era levar o tio para ser socorrido. E encetou a longa viagem montanha abaixo.

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