domingo, 28

de

abril

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2024

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O diferente mundo de Alícia

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Não se contentava com o óbvio que encontrava nos livros à sua frente

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Impressionante a transposição de vida de Alícia. Parecia-lhe que fora arrebatada para um mundo diferente, tal a diferença entre a época colegial e a que agora vivenciava.

O êxtase a dominá-la dia a após dia. Um diferente universo a rodeá-la. Ansiedade por novos conhecimentos. Imiscuía-se profundamente nos novos estudos. Não se contentava com o óbvio que encontrava nos livros à sua frente. Passava tardes na biblioteca da universidade em buscas de minúcias que pouco interessavam a outros. Não a ela.

As novidades não se restringiam à parte científica. Já na segunda semana de aula era necessário que se formasse uma comissão de calouros. Porque o trote oficial era inevitável. E os veteranos já haviam elaborado planos há longo tempo.

Não esqueceriam jamais do ignominioso trote que tiveram que suportar no dia da matrícula.

Foi o instante de apontarem no alto da escadaria que dava para o grande saguão de entrada — a secretaria localizava-se no piso superior —que um bando de veteranos ávidos por descomunal sanha de gozação — munidos de giletes, bastões de batons, tubos de tinta nada lavável naquela época e frascos de talco da pior qualidade —, atacaram-nos.

Não era raro ver minúsculos fios de sangue a escorrer de um couro já não mais tão cabeludo.

Camisolões rasgados e rebocados de qualquer forma por tintas de todas as cores eram enfiados sobre os pobres coitados depois de lhes tirarem as roupas.

E com esta indumentária e este aspecto eram obrigados a caminhar pelas ruas e a retornarem a pé para os seus tugúrios.

Com as calouras os veteranos eram mais condescendentes. Elas apenas saíam de lá com os cabelos brancos de talco e faces e braços tracejados em vermelho. Traços riscados de qualquer forma com batons da mais baixa qualidade. Inclusive com arranhaduras causadas pelas finíssimas paredes de metal dos bastões.

A pequena comissão de calouros pouco ou quase nada decidia. Afinal, calouros eram. A comissão de veteranos dava o apito final. Sempre.

Quatro eventos oficiais eram repetidos todos os anos. Com ampla participação de alunos de todas as escolas superiores.

O mais clássico de todos, o grande baile dos calouros, realizava-se sempre no tradicional Clube Thalia. Não era um baile de gala. Mas todos lá compareciam com suas melhores e mais finas roupas. Os homens, de terno e gravata. As mulheres, com o tradicional vestido soirée. Baile sempre abrilhantado por uma das tradicionais orquestras que tocavam em todos os grandes eventos das noites curitibanas.

Este baile culminava as tradicionais festas de recepção aos calouros.

No decorrer daqueles dias plenos de atividade, Alícia tentava explicar, uma vez mais, a Antônio, que precisava colaborar com os colegas para a realização dos eventos que seriam realizados.

Antônio não estava trabalhando e dizia que as aulas do cursinho ainda não haviam começado.

— Mas no ano que vem eu te prometo, Alícia, passarei no vestibular e farei medicina.

Não aceitou ir com ela nas festas dos calouros. Dizia não se sentir bem no meio acadêmico, uma vez que dele não fazia parte.

Certa tarde deixou-a a sós no cinema. Alícia retornara em prantos ao pensionato. Suas amigas tentavam, em vão, consolá-la. Não adiantava dizer-lhe que ele não servia para ela. Preferia perder as amigas do que concordar. Garantia-lhes que o amor a tudo venceria e que o problema era o fato de ser pobre e não encontrar um trabalho à altura dele. E assim, entre lágrimas, estudos e demais atividades, sua vida continuava.

Após tudo organizado, aprovado por todas as partes e, devidamente deliberado, iniciavam-se as grandes festas comemorativas ao advento dos novos estudantes.

Na tarde de um sábado, com escaldante sol, realizou-se o grande embate futebolístico entre a famosa e brilhante equipe dos veteranos e a pobre e esquálida formada pelos calouros.

Não havia, na história daquela peleja, uma única vez em que os calouros fossem os vencedores. Não havia. Até aquele dia em que entre os novatos havia dois que jogavam nos grandes times da capital. Reuniram quem eles considerassem bons jogadores e, secretamente, treinavam todas as tardes em um campinho de várzea.

Depois do jogo, uma tarde dançante, na sede social do clube de futebol. Com um afinado e rítmico conjunto musical e muito chope. Tudo patrocinado, na maior parte, pelos veteranos, um pouco pela taxa cobrada dos calouros e o restante referente a uma multa cobrada de um gozador veterano por uma indevida humilhação imposta aos acadêmicos.

Tudo começara no dia em que o aluno veterano, metido a ator, entregou aos calouros um folheto no qual anunciava uma peça teatral denominada A volta do Calouro. Seria realizada no teatro do Colégio Estadual. Vendeu todos os ingressos. Não apenas para os calouros.

Até a superiora do pensionato deu permissão para que a porta fosse aberta mesmo tarde da noite. Afinal, tratava-se de um assunto cultural e elas não poderiam perdê-lo.

E lá foram as garotas a curtir a noite na cidade grande. Ao chegar no colégio perceberam uma total escuridão. Talvez por serem as primeiras a chegar, confabularam entre elas.

Subiram as escadarias que as levaram até o auditório. Lá, um cartaz com grandes letras:

Volta, calouro, isto é trote!

Por alguns dias o tal veterano nem nas aulas comparecera. Sabia que a surra seria grande. Por parte de seus próprios colegas que também haviam sido ludibriados. A fim de melhorar o clima obrigaram-no a entregar a féria do falso espetáculo para a comissão de trote que a reverteu em chope na tarde confraternização futebolística e dançante.

A mágoa foi arrefecendo, mas a sacanagem jamais foi esquecida.

Voltando ao resultado do embate futebolístico não é preciso dizer que quase não saiu a tarde dançante e por pouco os veteranos não confiscaram os barris de chope.

Mas, como sempre, em situações similares, chega a turma do “Deixa disso” e a festa continuou até bem depois que a escuridão da noite envolveu a cidade.

Festa que acabou com vencedores e vencidos a cantar, desafinadamente, e com uma engrolada voz, aqueles sambas-canções que marcaram a época do tempo da fossa.¹

Na sede do diretório acadêmico que congregava os estudantes de medicina as atividades corriam soltas. Ficavam pouco tempo no anfiteatro de anatomia e para lá corriam a fim de, com afinco, trabalharem nas fantasias com as quais s apresentariam no tradicional Desfile de Calouros que no último sábado de março ocorreria na principal rua da cidade.

Alícia e suas colegas passaram a estudar as atividades sociais da época a fim de realizarem algo inusitado.

Na época havia uma fábrica de tecidos que, a fim de promovê-los realizava famosos desfiles, em sua maioria, no Hotel Cassino Quitandinha, de Petrópolis. Os Diários Associados, do jornalista Assis Chateaubriand, divulgavam-nos.

Jacques Fath, na época, um famoso costureiro francês realizava desfiles famosos com seus modelos nos mais variados salões do mundo.

Foi assim que as meninas se dirigiram à loja das Casas Pernambucanas e pediram tecidos com defeitos a fim de realizarem o trote de calouros imitando o da empresa rival.

Foi assim, que Alícia e suas colegas desfilaram no tablado de um caminhão no tradicional trote de calouros da Universidade Federal do Paraná, em 1953.

Um dos colegas, adequadamente trajado como o exímio costureiro, portava uma fita métrica, uma caneta e um bloquinho de anotações.

Uma tabuleta explicava ao povo que os aplaudia o que estavam a representar.

Jaques faz seus desfiles bang-bang no Chateau Brillant em Quinta Andinha.

Havia um evento praticamente destinado aos alunos católicos. Tratava-se de uma Santa Missa realizada no Colégio Santa Maria. Após a cerimônia religiosa era servido um monumental café com sanduíches e bolos no grande pátio. E assim fiéis de todas as religiões lá compareciam.

Após o café apresentavam-se artistas do Teatro do Estudante, bailarinos do corpo de baile do Teatro Guaíra e instrumentistas da Orquestra Estudantil de Concertos.

Enfim, manhã dominical plena de assuntos piedosos, gastronômicos e culturais.

Depois de tantas festas e confraternizações, enfim, calouros e veteranos tornavam-se irmãos naquele primeiro ano em que Alícia abrira as cortinas e entrara em um mundo diferente, o mundo em que navegava entre a ciência, o amor e o carinho de seus amigos.



¹Sambas – canções com letras carregadas de dor de cotovelo. A maioria, do compositor Antônio Maria e interpretadas pela cantora Nora Ney.

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