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abril

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Mãos de mãe, o conforto de um afago

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Lembrava-se, nitidamente, de todos os detalhes daquela noite fatídica

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O vento de maio a balançar as árvores de seu jardim envolve-a com as lembranças amenas de um passado distante em que as mãos de sua mãe amenizavam as dores do corpo, as dores da alma.

Recorda o gelado vento de maio dos tempos de outrora. De um tempo que imaginara apagado em sua memória. Dos tempos que vivera nas distantes terras frias do sul.

O peso dos anos não curvara seu corpo que altaneiro, entre as flores circulava. Sua memória passeou pelos trágicos dias em que o seu mundo desmoronara. Não fora o primeiro golpe a receber em sua existência. Mas fora uma profunda punhalada no mundo que mais amava, a sua profissão.

Não fazia a menor ideia do que poderia lhe acontecer. Seu destino estava nas mãos de uma única pessoa. De seu veredicto dependeria sua vida futura. Não, não de seu veredicto. Fosse qual fosse. Só o imaginar-se sentada, como ré, à frente de um magistrado fizera-a já sentir milhares de mutilações em sua alma.

Não entendia como o pensamento das pessoas pode ser tão perverso ao ponto de imputar-lhe um crime que em sua mente não cometera. Sim, um crime. Embora encapsulado sob o nome de erro médico. Porque só quem comete um crime senta-se no banco dos réus.

Lembrava-se, nitidamente, de todos os detalhes daquela noite fatídica.

Naquela distante noite de fim de verão estava a conversar com sua mãe quando a chamam do hospital. Era médica anestesiologista. Com título superior já em seu currículo. Com centenas de horas de cursos teóricos e práticos.

Precisava anestesiar uma gestante. Sem condições de um parto normal. Uma inevitável cesariana. Uma esquálida mulher. Sofrida pelos anos. Não havia tempo para serem avaliados os antecedentes clínicos. Feto já em sofrimento. Com todo o cuidado ministrou-lhe a anestesia. Nasce a criança. Parecia que tudo estava correndo bem. Finda a cirurgia. Paciente feliz, a sorrir.

E eis que, num repente, começa a convulsionar. Como se fora um ataque epiléptico. Medicada com os anticonvulsivantes clássicos e ventilada sob pressão. Para que seu cérebro não sofresse deletérias consequências devidas à anóxia.

Tarde da noite volta para casa. Na manhã seguinte ao retornar à casa de saúde contam-lhe que a paciente tivera outra crise convulsiva. Fora atendida pelo médico plantonista e estava tudo bem.

Horas mais tarde as convulsões retornaram e a paciente ficou inconsciente. Transferida, às pressas, para um hospital de uma cidade grande.

Retornou com sequelas. Com dificuldade de deambulação em uma das pernas e de movimentação do membro superior de mesmo lado.

O diagnóstico popular teve o aval de quem a atendera na cidade grande. Culpa da anestesia. Médica anestesista culpada. Tem de pagar pelo seu erro.

Era o início dos tempos negros para quem exercia a profissão médica. Alguns advogados já não mais faziam plantão apenas em portas de cárceres, mas de hospitais também.

E o processo contra ela teve início.

Vestiu-se como se fora uma atriz a representar seu último papel.

Foi o amor de sua mãe que lhe deu ânimo para, altivamente, no banco dos réus tomar assento.

Foi as mãos de sua mãe que acariciaram sua face e seus cabelos que a fez sorrir.

Foram as palavras de sua mãe, palavras que ela levou pela vida, que lhe deram o apoio para, de olhos abertos e porte altaneiro, aguardar sem tremores e sem temores o veredicto final.

— Filha, você está linda com este vestido branco. Parece que estou à frente da mais bela atriz do cinema! Você está mais linda que a Ava Gardner.*

Após passar pelas agruras de um interrogatório que mais parecia uma câmara de tortura, tudo terminou.

Ao chegar em casa a mãe a esperava no portão. Atirou-se em seus braços entre sorrisos e lágrimas.

E de sua mãe ouvia as mais lindas palavras:

— Minha amada filha, eu tinha certeza de sua absolvição. Eu a conheço por dentro e por fora e sei o quanto você sempre se dedicou à sua profissão e a todo este povo destas redondezas todas. Só quem não a conhece foi capaz desta maldade toda. Mas a justiça foi feita. Vamos jantar que a sopa que você mais gosta está fumegando no fogão.

Nos dias que se seguiram sentia alívio somente à noite, após exaustivo dia de trabalho, quando retornava para casa e encontrava o sorriso e os olhos de sua mãe.

Sentia o vazio na multidão. Mesmo após a justiça comprovar que sua conduta fora correta percebia a seu lado sorrisos cínicos e olhares desviados.

Poucos foram os colegas que a abraçaram com alegria após o veredicto final.

O dia de ficar só aconteceu. Sua mãe se fora. Um cansado coração que sempre transbordou amor cansou de bater.

Foi então que ela arrumou suas coisas e partiu para a distante floresta bem perto da linha do Equador. Lá o seu mundo era outro. Feliz passava os dias a atender as pessoas carentes de tudo que viviam às margens dos grandes rios.

Um barco era o seu hospital. Pode realizar o sonho de sua vida. Um sonho que ela nem sabia que um dia tivera. Atender aquele povo ribeirinho que vivia sem assistência médica, sem assistência à saúde. Com ela uma equipe de pessoas que se desprenderam de tudo e passaram o resto de suas vidas a levar alívio às dores, a viver melhor.

Um barco agora era a sua vida.

E nas noites ela via o sorriso e o meigo olhar de sua mãe e sentia o afago de suas mãos em seus cabelos.

*Famosa atriz americana.

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