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Estranhamento linguístico e alienação

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A palavra que resume o bizarro enredo de Anthony Burgess, publicado em 1962, é estranhamento. Primeiro, pela linguagem, uma vez que o autor, literalmente, cria um dialeto, que ele denomina de Nadsat, cujos vocábulos são amálgamas de palavras e expressões usadas por uma gangue ultraviolenta, que tem como líder o protagonista Alex.

A experiência de distorção linguística é proposital, não apenas pela inovação vanguardista, mas também para frisar que os adolescentes que a usam estão tão à margem da sociedade, que até sua comunicação é surreal e limitada a poucos membros. Para acompanhar o fluxo narrativo, o leitor precisa recorrer, não raras vezes, ao glossário preparado por estudiosos da obra. Palavras como “brati, domi, forela, gorlo, drugui” perpassam toda esse enredo distópico.

Ou seja, é uma distopia porque descreve uma suposta sociedade inglesa cujos métodos para combater a violência urbana são mais ferozes do que os praticados pelos delinquentes. Alex e sua gangue são violentos sem nenhum motivo claro. Por outro lado, o protagonista é um paradoxo, pois, na mesma medida em que se deleita espancando pessoas, também aprecia música clássica, outro fato que nos causa estranhamento.

Além da proposta sui generis de experimento linguístico atrelada às características dos usuários das gírias, a obra também é um ícone da alienação pós-industrial e da incorporação de um novo elemento no cotidiano dos cidadãos, a saber, a televisão.

Para nós, que vivemos na era da Internet, com facilidade de comunicação e todo acesso às mais diversas formas de entretenimento e informação, é difícil imaginar uma sociedade antes do surgimento da TV e logo que ela foi introduzida nas rotinas familiares. Esse aparelho modificou a visão de mundo das pessoas e, sobretudo, as formas de relacionamento, tomando, muitas vezes, o lugar do diálogo e das interações humanas.

O jovem Alex, por exemplo, quando é submetido ao espantoso tratamento para curar seu instinto violento, sendo uma das etapas assistir a filmes com enredos e personagens extremamente cruéis, declara que: “É gozado como as cores do mundo real só parecem reais de verdade quando você as videia na tela” (BURGESS, 2019, p.171). Isto é, já na década de sessenta do século vinte, Anthony Burgess, avant la lettre, escancara o argumento de alienação frente às tecnologias, como se a percepção da realidade estivesse condicionada à televisão, ou seja, só “enxergamos” as matizes através das telas, e, assim, o mundo “real” é um plano secundário e indiferente aos olhos dos seres mecanizados.

O leitor pode perceber que, apesar do desconforto com a linguagem e com o enredo cruento, ele não é tão distópico quanto parece a priori, pois não é exatamente isso que vivemos na contemporaneidade? Não somos condicionados, a todo momento, aos nossos celulares? Não é através deles que percebemos a realidade que nos rodeia? As Fake News não são uma distopia criada, propositalmente, para nos alienar e nos incluir num universo paralelo de informações imprecisas que, assim como no contexto do personagem Alex, nos incitam ao cultivo das mais diversas formas de violência, como a exclusão, o preconceito, o racismo, a misoginia, a xenofobia, entre outros?

Deixo-os com esses questionamentos e com a provocação para a leitura da obra e, por conseguinte, a sua comparação com a atualidade e a reflexão sobre o que podemos fazer para não sermos, meramente, uma “laranja mecânica”.

(BURGESS, Anthony. Laranja Mecânica. 3 ed. São Paulo: Aleph, 2019).

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