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Igreja e educação no Brasil colonial

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Para os portugueses, os colégios (que levam às letras) se constituíam como importantes instrumentos (suportes para a) da fé

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Reginaldo Antonio Marques dos Santos*

Ademir Valdir dos Santos**

O professor José Maria Paiva possui Graduação em Filosofia pela Universidade de Mogi das Cruzes (1970), Graduação em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Tupã (1976), Mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (1978), Doutorado e Pós-Doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (1985, 2003). A resenha a seguir refere-se a capítulo da coletânea Histórias e memórias da educação no Brasil, publicado pela Editora Vozes no ano de 2004, organizado por Maria Stephanou e Maria Helena Camara Bastos.

Abrindo o texto, Paiva chama a atenção para uma reflexão sobre as diferentes formas de compreensão dos povos sobre a escrita ao longo dos séculos e a sua função enquanto registro: “A escrita é um dos caminhos que temos para conhecer a vida dos homens. Esta é o verdadeiro objeto do conhecimento humano” (PAIVA, 2004, p.77). E ao analisar a conjuntura da cultura europeia na Idade Média remete à constatação de que a escrita, neste contexto chamada de ‘letras’, possuía características religiosas. Ou seja, “A função das letras era registrar a forma válida de se viver em sociedade que, à época, se entendia como realização da ‘família’ de Deus […]” (PAIVA, 2004, p.77, grifo no original). Ao mesmo tempo, as letras representam a realidade, a compreensão que se tem desta. E também pelo fato de tal compreensão estar ligada às experiências sociais, o significado das letras não é estático.

Destarte, as mudanças nas experiências sociais, ao longo do tempo, se vincularam ao fomento do comércio internacional. Na visão desse autor: “As relações sociais se remodelaram a partir de novos fazeres, criando-se as condições para o grande comércio: transporte, entrepostos, bancos, casa de negócio, que buscavam lucros, dividendos, impondo salários, taxas, impostos” (PAIVA, 2004, p.78). E assim, o papel das letras vai passando de religiosas para mercantis.

Tais mudanças implicaram na atenção às novas atividades e relações de trabalho que se estabeleceram em profissões como “[…] homens de negócio, comerciantes, banqueiros, contadores, etc. Tornava-se necessária uma instituição que possibilitasse seu acesso: nascia a escola. Nascia, naturalmente, junto ao clero, herdeiro dessa tradição” (PAIVA, 2004, p.79).

O autor alerta, contudo, que não houve uma ruptura com a Idade Média naquele contexto, mas sim, desdobramentos, dos quais cita dois exemplos: 1] a organização do Estado em Portugal; 2] A Companhia de Jesus. No primeiro caso, “o rei era rei numa sociedade mercantil” (PAIVA, 2004), o que quer dizer que, ao mesmo tempo, a igreja estava incorporada ao reino e os demais corpos também eram detentores de tal compreensão, preservando-se assim, a tradição.

Quanto ao segundo exemplo, a Companhia de Jesus, poderia ter sido fundada para atuar junto à uma organização societária que, doravante, passa a ter como principal característica o modo mercantil. Quer dizer que “Sua espiritualidade não contradizia a verdade: realizava-a com propriedade, entendendo perspicazmente a forma mercantil da sociedade quinhentista” (PAIVA, 2004, p.81, grifo no original). Até mesmo a salvação – incumbência do rei – estava agora mercada.

A escola surge neste contexto para ensinar, algo até então próprio da igreja, não obstante, o clero cuidava para transmitir seus fundamentos, preservando o magistério e atendendo aos interesses desse novo modo de ser sociedade. Na medida em que se transformam tais interesses, torna-se importante reconfigurar o modo de dizer ‘a verdade’ e, diante das novas exigências da vida secular, surgem os colégios. “Colégio e fé se imbricavam, não alterando a compreensão que, desde a Idade Média, se tinha dos estudos. O que estava alterado […] era a realidade social em que a fé se exercitava” (PAIVA, 2004, p.81).

Aparentemente, ocorre uma dicotomia quanto ao proveito da instituição escolar. Por um lado, a necessidade de escolas para ensinar a fé, e, de outro, o ensino da fé levando ao estabelecimento de escolas. A possibilidade de olhar para ambos pode expor o caráter de interdependência entre fé e escola, igreja e educação. Nos termos do escrito em tela: “É preciso entender esta passagem mútua para compreender o porquê de padres se incumbirem de colégios, para se entender o caráter religioso do ensino, e finalmente, a relação Igreja/Educação na história da sociedade brasileira” (PAIVA, 2004, p.82, grifo no original).

Na sequência, Paiva cita trecho da carta de D. João III, na qual se busca a colaboração de clérigos letrados. O objetivo de tal busca consiste no ‘acrescentamento’ da fé católica. O autor critica o fato de que o rei, assim como os padres, não verem “[…] desproporção entre esse acrescentamento e as letras, entre esse acrescentamento e os colégios, atividade que se fará central na obra jesuítica na colônia. Acrescentamento, letras e colégio constituirão uma unidade, alimentando a vida social” (PAIVA, 2004, p.82, grifos do original).

Para os portugueses, os colégios (que levam às letras) se constituíam como importantes instrumentos (suportes para a) da fé. O autor relata também que para o pioneiro missionário jesuíta Nóbrega “[…] era natural a ideia de construção de um colégio, como o seria a de casas para moradia, de igreja para o culto, de fortes para a defesa, etc” (PAIVA, 2004, p.84). Naquele contexto, para a sociedade portuguesa havia a sensação de que, a partir do colégio, as coisas estavam bem, no lugar certo, na normalidade, no cuidado com o espelhamento da fé.

Nesta direção, é crucial para a educação cristã, formar nos bons costumes, pois estes produzem o entendimento da fé, enquanto o oposto poderia levar os homens ao distanciamento da verdade. Remetendo novamente à escrita em análise: “Educar significava primeiramente formar os alunos na fé, nos bons costumes, na virtude, na piedade, isto é, na religião. A cultura portuguesa era religiosa: a educação do colégio era religiosa. Deus, a referência; os bons costumes, o sinal de fidelidade. Assim foi a educação na Colônia” (PAIVA, 2004, p.85).

O autor comenta sobre o fato de haver muita literatura, não somente aquela dos padres, e chama a atenção para o Ratio Studiorum – o Código Pedagógico da Companhia de Jesus, que norteia o colégio na Colônia. Ao mesmo tempo, emite um alerta ao leitor, “[…] para que não atribua a religiosidade da educação ao fato de serem padres seus promotores. Insisto: era toda a sociedade portuguesa que assim percebia” (PAIVA, 2004, p.85).

O objetivo principal do colégio é cultivar a virtude. Assim, o ensino dos bons costumes – acompanhado do ensino das letras – antecede o ensino das ciências. Em seguida, são apresentados adendos do Ratio Studiorum, reforçando que tais proposições diziam respeito à educação de modo geral e não somente ao sacerdócio. Todavia, igreja e educação possuíam relação intrínsecas neste contexto. Destarte: “É missão do professor exortar os alunos à oração cotidiana, à recitação do terço, ao exame vespertino de consciência à recepção frequente e digna dos sacramentos, à fuga dos maus hábitos, ao horror ao vício (181, 5). A assistência à missa a audição da pregação, exortações espirituais […]” (PAIVA, 2004, p.87).

Ressalta-se também a importância da memória naquele contexto. Não se deve mudar nada, “[…] mas somente atualizar o que está dado para sempre” (PAIVA, 2004, p.88). Esta se apresenta como a função da memória enquanto preservação dos bons costumes e sentido da vida em favor do amor divino. A igreja estava presente em tudo, pois segundo o olhar de Paiva para os séculos XVI e XVIII, as percepções mantêm as mesmas características. Talvez possa ser questionado se alguma delas deixou seu lugar no século XXI.

Na descrição do autor,

[…] toda a vida social era permeada de simbolismos cristãos, desde o nascimento de uma criança, com o batizado, até a morte, com o viático, confissão, unção dos enfermos, benção do corpo na igreja, enterro acompanhado do clero, com cânticos e orações, cemitério religioso, etc. As repartições públicas traziam o crucifixo ou imagens de santos (PAIVA, 2004, p.89).

Imersa em toda parte, não haveria uma educação, se não religiosa, um colégio, se não religioso. O apontamento de Paiva quanto à escolha da Companhia de Jesus se dá pelo fato desta estar “adequada às novas sensibilidades mercantis” (PAIVA, 2004, p.89). O autor conclui tratando das transformações do sentir social a partir do século XVII, que geram um embate na relação entre religião e ciência, embora, ao mesmo tempo, permaneça o caráter institucional da religião.

O matiz catequético e religioso dos jesuítas não os impediu de serem filhos de seu tempo, nos moldes dos interesses que sobressaem da coroa. Embora o modelo traga consigo a salvação das almas, o que está em jogo é muito mais a conquista, a ocupação dos espaços. Tal condição, por um lado ressalta a importância destes padres na formação do modelo educacional que vai ser construído no Brasil. Por outro lado, representa a violência sobre os povos que aqui viviam.

Encontram-se inúmeros resquícios da herança jesuítica na educação brasileira e, igualmente, na sociedade brasileira. Se a religião era o modo de vida e a razão principal desta, seu reflexo está, dentre outros, nos prédios públicos, nos feriados, na defesa do Ensino Religioso confessional como disciplina escolar, nas canções populares de grandes nomes da música brasileira e até nas práticas conservadoras que se apresentam em grande escala no século XXI.

A mesma herança que possibilita a organização e criação de espaços educacionais também representa a dor e o sofrimento humanos. Pode-se até deixar de estudar, de contar, ou ainda, mentir sobre ela, o fato é que a história está aí, batendo à porta de cada ser que assume o compromisso ético de viver em sociedade. Resta saber, o quê de fato se aprende (u) com ela?

Reginaldo Antonio Marques dos Santos é professor de Sociologia – EEB Frei Menandro Kamps/EEB General Osório. Mestrando em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Ademir Valdir dos Santos é professor de História da Educação Brasileira no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

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