Eu deveria estar tranquila agora. Tranquila como as águas plácidas dos lagos esquecidos nas montanhas azuis
Houve o tempo dos curtos rabiscos delineados em esparsas folhas encontradas ao léu.
Era mais um tempo de sonhos, um tempo de buscas, um tempo de trabalhos sem fim. Nos curtos intervalos as divagações envolviam-me. Ao encontrá-los, décadas após, mesmo rabiscados em épocas diferentes, são todos encadeados em torno de um mesmo tema.
1974
“Eu sou uma gaivota que gosta de voar, talvez …”
Eu sou
Eu fui
Eu queria ser.
Chegamos juntos ao fim da escada,
ao fim da estrada.
Subimos juntos, caminhamos juntos, atrasamos a subida, atrasamos a caminhada porque não soubemos como dar-nos as mãos.
Chegamos juntos, mas chegamos tarde.
Porque nossos tentáculos não se somaram, serviram apenas para magoar nosso cerne, para reavivar feridas, para rasgar a carne.
Nossas mãos jamais se uniram para mais depressa vencermos a subida.
Nossas arestas exacerbaram-se ao nosso contato áspero, retardando nosso caminhar.
Se unidas estivessem as nossas mãos o nosso caminhar teria sido suave e teríamos polido as asperezas.
Suavizaríamos a jornada.
E já teríamos chegado aqui há tanto tempo.
Chegamos juntos, sim, no fim da escada.
Chegamos juntos, sim, ao fim da estrada.
Por que não fizemos desta peregrinação tão mutilada uma prece?
E teríamos chegado juntos, de mãos dadas e no tempo certo.
E no momento certo a certeza da esperança em trilharmos outra vez uma estrada mais curta, mais amena.
Onde nossos pés cansados encontrariam riachos para lavar as feridas, refrescar a ardência e repousar submersos.
Agora chegamos.
E já é tarde?
Ou conseguiremos bênçãos novas para mais fortes continuarmos esta ascensão aos azulados montes onde encontraremos a paz?
1976
Eu deveria estar tranquila agora. Tranquila como as águas plácidas dos lagos esquecidos nas montanhas azuis.
Mas não estou.
Não é saudade ao te ver dando adeus. E nem por te saber distante mais uma vez.
Teu retorno ao nosso mundo seria a razão maior de uma tranquilidade multiplicada.
Ver-te partir sorrindo, agora, saltitante, traz a imensidão do riso que se espalha solto na certeza de que teu espírito inquieto vagueia apenas nas brancas e limpas pradarias. E permaneces belo. Teu corpo apenas parte.
Eu deveria estar tranquila, sim.
Mas não estou. Porque quando a corda amacia de um lado em outro estará sendo esticada.
Pressinto o vácuo. Pressinto a prensa se formando. Pressinto amarras. Cordames apertando. Ar denso, ar quente a sufocar.
Novamente colunas de fogo e espinhos a açoitar-nos. Novamente as inclementes vergastas do tempo a nos açoitar.
Tentativas de derrubar o templo que nem acabara de ser reconstruído.
É pena. É pena, é uma tristeza insana a tudo rodear. E a derrubara araucária soberana.
Não seria a nossa arrogância que atrai a tempestade? Nossa arrogância, sim. Nós somos estas araucárias vistas de longe, com braços abertos estendidos para o céu… esperando bênçãos, esperando paz. Mas apenas vistas… atraentes araucárias logo cairão ao solo aos golpes dos machados e das serras ambiciosas…
… ou derrubadas pelo açoitar dos ventos que as agitam.
É melhor tentar a mutação para um arbusto mais duro, de raízes infiltradas adentro pela imensidão da terra. Sendo sombra, sendo apoio, mas mesclada aos muitos, aparentemente iguais de uma floresta inteira.
20/11/1976
Voou mil sóis e mil mundos. E chegou naquele mundo. Mundo sem pranto, sem trevas, sem sombras. Sem pesos. Sem amarras.
Voou mil mundos. Atravessou mil sóis. E foi nessa travessia de difíceis barreiras que alcançou o ilimitado. Uma difícil e árdua travessia a polir arestas. Até atingi, enfim, o brilho transparente e indefinível… o brilho que eu jamais conseguiria explicar.
Foi gerado na mesma carne em que nós todos fomos gerados.
Germinou com as mesmas limitações que nos limitaram.
Trouxera grossas correntes nos pés, como nós todos trouxemos.
E teve asas de chumbo, como todos nós tivemos.
Mas trouxe dentro de si uma força imensa que nós somente invejamos.
Seus ombros eram frágeis. Mas carregava o fardo. O mesmo fardo que nós, de ombros fortes deixávamos à margem da estrada.
Muitas vezes nós o vimos cruzar a linha do horizonte só, sozinho…
E muitas vezes ele voltou ao nosso canto triste. Nosso triste canto sem cantigas, sem cantos e sem encantos.
A carregar o seu fardo. Sempre. Pés descalços na estrada de espinhos. Na estrada de pedras.
Encontrava ressonâncias, sim. Quantas vezes!
Muitos cantaram com ele a canção da coragem e com ele arrastaram as pesadas correntes… arrastaram as pesadas correntes até perceberem que partidos estavam seus elos…
E cada vez o seu cruzar a linha do horizonte tornava-o mais iluminado pelo sol.
No início era apenas uma negra silhueta projetada contra a luz brilhante do grande astro dourado.
E sua imagem mais resplandecia a cada adeus … até o dia em que o sol se tornou uma negra silhueta quando ele sumiu no infinito azul que morava mais além.
Não compreendemos o porquê da saudade que ficou. Cegos na incoerência de vidas largadas à margem da estrada, mais cegos tornamo-nos com a luz resplandecente que fluía de seu todo.
Sentimos que o amigo não retornaria. Culpamo-nos mutuamente pelo desespero que restou. Um desespero só.
Hoje enxergamos por outro prisma. E olhamos os séculos que ficaram atrás de nós, séculos impregnados de erros. E de inutilidades carregados.
Ele foi exemplo. E foi voz amiga. Nós o desprezamos e até o odiamos por sentir o magnetismo de seus olhos meigos semeando nas escarpas.
Nós o odiamos tantas vezes ao sentirmos a repreensão em seu sorriso amigo.
Quantas vezes retornou ao nosso convívio?
Através de séculos engasgados na garganta sentimos a vergonha. Somente agora.
Você esteve junto comigo tantas vezes. Devo ter olhado você com escárnio dentro de vestes empoeiradas e rotas.
Ou devo ter olhado para você com horror ao ver a inutilidade do esforço para o teu olhar enfrentar.
Nosso pequeno mundo girou tantas voltas. Voltou tantos giros. E nós dentro dele vivendo a vida apenas. Vivendo a vida-terra sem tentar o infinito. Vivendo a pequenez frustrada a espera do ouro. Vivendo o anonimato vivido a espera de um nome, a espera de um poder.
E a ignorância total de um mundo melhor induzindo-nos abstratamente para o nada.
