sábado, 27

de

abril

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2024

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Fantasmas dançantes das noites de nevoeiro

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Foi num tempo assim que o Amor partiu

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A névoa ao longe naquele entardecer sem cores a turvar-lhe a mente, a turvar-lhe a alma, a turvar-lhe a vida. O jardim perdera as cores. Apenas o cinza à sua frente.

Sucediam-se noites e dias de uma umidade gélida e constante. Intensa umidade a aumentar a angústia que lhe corroía as entranhas.

Foi num tempo assim que o Amor partiu. Foi num tempo assim que o Amor foi escrever seus poemas nas esferas distantes.

Lá fora o cinza e o frio e a névoa aproximam-se, lentamente, de sua janela. O calor das chamas na lareira pouco acaricia seu dorso. Refletida na vidraça a erótica dança de um fulgurante fogo. Em suas mãos a quase vazia taça do rubro líquido que imaginara aquecer-lhe o corpo, aquecer-lhe a alma. Réstias de cor. Laivos de calor. Lágrimas cobrem-lhe as faces. O salgado da vida a aflorar. Vãs tentativas de abrandar a dor de sua atordoada alma. Atordoada alma a esvair-se em pedaços desde o dia em que se vira a sós. A sós em meio a multidões. Sozinha no vácuo absoluto em que o seu ser se tornara.

E em meio às elucubrações que a atormentam, em meio à nevoa de uma crescente escuridão enceta a caminhada para o alto mais alto das serras. Em sua mente aquele mágico lugar ainda deveria existir no âmago da mata. O mágico ponto sem névoas. Onde ela e o Amor, em êxtase, cobriam-se de luar. Porque lá as névoas jamais ousaram chegar.

Na estrada o último poste com a última lâmpada acesa, quase encoberta pela ramagem de uma altaneira araucária, mostrava um lusco-fusco envolto pela espessa neblina dançarina.

Adentra a mata. Segue a antiga trilha até a beira do precipício. O fim tão perto. Não mais agruras. Não mais a dilacerante saudade.

Como um raio, de súbito eles aparecem. Como se fossem um sólido muro nevoentos vultos aglomeram-se à sua frente. E começam a sua insinuante dança que não cessa de ser dança e que jamais cessa de se insinuar.

Riem os fantasmas através da névoa que os envolve. Espalham-se no espaço. Dançam suas mirabolantes danças siderais. Como se parte fossem do já espesso nevoeiro perambulam em todas as direções. Enleiam-na nesta dança, que parece atingir a estratosfera.

E ao envolvê-la em seus mantos de névoa intensamente movem-se entre os ramos das árvores. E a floresta enche-se de sons como se violinos ali estivessem sendo tangidos.

Estática ela os vê. Absorta, ouve-os.

Chegaram envoltos na noite nebulosa para bloquear suas insanas intenções?

E no embalo do espesso nevoeiro, os seus fantasmas iniciam a sua dança, que nunca cessa de ser dança, que nunca cessa de enevoar.

E eles dançam em meio à névoa que os enreda, que os transforma, imiscuem-se em meio a ela, transmudam-se em seres semipalpáveis, somem e retornam como se de dentro das árvores brotassem.

E os silvos e os sibilos de suas diáfanas vestes a roçar pelas fímbrias das ramagens transfiguram a mata em um anfiteatro monumental.

 E ela ouve as melodias que nos felizes tempos que se foram ouvia ao lado do Amor. Cantigas que pediam amor e luz, paz e liberdade nas eras ditosas dos tempos que se foram.

E os seus fantasmas, em meio ao nevoeiro da mata do alto da serra, continuam sua dança. E sorriem para ela. Sorrisos tristes porque tristes estão ao vê-la triste.

Lágrimas inundam sua face. Espalham-se na relva. Em sua memória os últimos momentos de vida do Amor. E as palavras, as mais tristes palavras que ouvira em sua vida. O Amor, de braços abertos, em haustos profundos a pedir um ar que em seus lesados pulmões não mais entrava. E a lhe dizer que o momento da partida era iminente…

Movem-se os fantasmas. Com seus diáfanos gestos tentam persuadi-la a deixar o solo onde estática ficara. Desvairada, segue-os. Não sente os espinhos nem a umidade da grama. Não sente o frio da madrugada. Não parece íngreme o caminho. É como se flanasse pelo ar, pela névoa.

Melodias enchem o ar. E assim, num repente, ao chegarem em um clarão da mata, num instante mágico afastam-se os fantasmas, afastam-se as cortinas nevoentas e surge a lua em todo o seu esplendor. E como se de névoas fosse o seu ser surge o Amor a sorrir para ela.

Sente o calor das mãos de névoa do Amor a afagar seu rosto, em meio a seus cabelos. Sente o calor dos braços de névoa do Amor em seu dorso. Suaves mãos e suaves braços de névoa e luz.

Em seu íntimo, no seio de sua alma, nos mais profundos nichos de sua mente ela pressente as palavras que o Amor lhe transmite. O Amor, em silêncio. Mas ela ouve sua voz nos místicos espaços que impregnam seu espírito.

Poemas ainda em imersão precisariam voar. Nos escaninhos escondidos ainda do mundo as cartas e os poemas do Amor. Preciso era espalhá-los pelas veredas da terra.

Não, ela não iria mais embora. Não mais saltaria precipício abaixo como há tantas luas imaginara. Não mais estraçalharia seu corpo em moléculas perdidas pelas encostas da serra. Não mais o seu microcosmo seria levado ao mar pelas águas turbulentas das cascatas que rugem ao fundo e multiplicam-se pelo caminho.

E os fantasmas a sorrir levam-na de volta a seu mundo onde as labaredas continuam o seu fulgurante erótico bailado.

A taça de vinho ainda em suas mãos. A mesma taça, o mesmo vinho. Lembranças de um amor tão pouco vivido com seu Amor. Um amor silencioso, de contemplação. Um amor realizado em poemas na distância do tempo em que tentaram juntos embarcar em naves que os levassem a mundos mais aprazíveis. A mundos onde o amor é entendido como o amor entre dois espíritos.

A mesma taça em suas mãos. As mesmas lágrimas a rolar em sua face. O mesmo calor das labaredas a aquecer seu dorso. E o corisco de desânimo que por segundos a perturbara voa para junto da névoa que permanece em seu jardim.

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