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abril

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2024

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E do mar Marcelino nunca mais voltou…

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Desembarcou mais angustiada que nunca e enfrentou um mundo desconhecido

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Era uma alegria para Marcelino o dia em que partia para o mar. E outra quando retornava a seu lar, ao seio de sua família. Sua filhinha estava a crescer enquanto singrava pelas águas do Atlântico. Quase não via como ela ia mudando. De tamanho. De agilidade. Não a ouvira pronunciar as primeiras palavras. Chorara de emoção quando dela ouviu o primeiro “Papáa…”

Ainda bem pequenina, uns três anos, talvez —lembrava-se Thereza—, quando Marcelino se sentou na escada da parte de trás da casa e a sua Pietra Rosina começou a passar saliva em seus cabelos. Dizia-lhe que iria penteá-lo e deixá-lo bem bonitinho. A saliva era o fixador e as mãozinhas dela o pente. E ele sorria de felicidade.

Marcelino demorava-se até mais de uma semana no mar. Um telegrama para Thereza era seu primeiro ato ao retornar. No mesmo dia, ou o mais tardar no dia seguinte, tomava o trem e voltava para os braços de seus amores. Passava horas a conversar com sua filhinha. Trazia-lhe mimos de todas as partes por onde andara.

Fazia já mais de uma semana partira pela última vez. Era tempo de inverno. Ainda bem que colocara blusas e pulôveres adicionais em sua sacola, pensava Thereza. Mas a apreensão começou a tomar conta dela. O tempo corria e Marcelino não voltava. Passavam-se os dias, passavam-se as noites e dele nenhuma notícia ela recebia. Há um mês já que partira. Deveria estar de volta. As viagens jamais duravam tanto tempo.

Nada mais lhe restava a não ser ir até o porto de Antonina. Precisava ver e sentir de perto o que estaria acontecendo.

Em desespero juntou seus últimos tostões. Tomou o trem da manhã, desceu a Serra do Mar. Em Morretes a angústia da espera para tomar a composição mista que, pelo ramal recém inaugurado, levá-la-ia ao Porto de Antonina.

Desembarcou mais angustiada que nunca e enfrentou um mundo desconhecido. Pessoas de todas as espécies perambulando junto ao cais. Navios ao largo, à espera para atracar. O rebuliço do desembarque de pessoas que acabavam de chegar e de outras acotovelando-se para embarcar.

Marinheiros sujos, com seus bonés de banda, seus gorros estranhos passavam por ela. Ouviu toda a sorte de gracinhas, de elogios e de palavrões. Informando-se aqui e ali, naquele rebuliço encontrou por fim o encarregado do terminal onde Marcelino trabalhava.

Mas o seu João nada pode lhe adiantar. Sabia apenas que Marcelino não havia embarcado no navio, conforme havia sido combinado. Disso ele tinha certeza.

— Olha aqui dona Thereza. Aqui está o manifesto com os nomes de todos os marinheiros e trabalhadores da empresa que embarcaram no navio Estrela do Oriente. A senhora pode ver. Não consta o nome dele. Nem neste e em nenhum outro barco desde o dia em que aqui ele esteve. Não entendo como a senhora não teve notícias. Como ele não aparecia, enviamos um telegrama para Curitiba a fim de saber dele. Precisávamos saber se não queria mais trabalhar conosco ou o que estaria acontecendo. Chegou aqui de manhã, neste mesmo horário, neste mesmo trem que a senhora pegou. Fizemos todos os arranjos necessários. Ele é um conhecedor profundo da arte de navegar. Estava escalado como Imediato e na hora não apareceu.

Thereza não queria acreditar no que acabava de ouvir. O tal telegrama nunca chegara em sua casa. Precisava retornar naquele dia mesmo para Curitiba. Deixara a pequena Rosina em casa de sua madrinha e garantira que era só conversar com Marcelino e saber porque não dera notícias e na mesma noite retornaria.

Mas precisava agora de mais tempo. Falar com as autoridades policiais. Encontrar Marcelino de qualquer forma.

Foi até a pensão onde ele sempre se hospedava quando pernoitava em Antonina. A dona de nada sabia. Lembrava-se de que ele ali estivera ainda na parte da manhã, logo depois de ir até o porto, a fim de pegar alguns pertences.

Com a polícia Thereza pouco conseguira de concreto. Mas garantiram-lhe que logo começariam as investigações, uma vez que muitos dias já haviam se passado desde aquele em que pela última vez havia sido visto nas imediações.

Inconformada e sem condições de por lá permanecer embarcou no trem de volta para a capital. Ao tomar nos braços sua pequena Rosina as lágrimas, em torrente, desandaram.

Onde estaria Marcelino? Teria sumido, sorrateiramente, em outro navio, tomando um rumo desconhecido? Estaria acoitado em casa de alguma amante? Teria embarcado em um navio de grande porte e retornado para a Itália?

Ou… algo pior ainda teria acontecido? Caído no mar enquanto preparavam o cargueiro no qual viajaria como Imediato? Sim, ela já tinha ouvido falar de homens que são arremessados ao mar pelos grossos cordames que a torto e a direito movimentavam-se pelo convés enquanto os navios eram preparados.

Ou… teria sido assassinado e seu corpo jogado ao mar para ser consumido pelos peixes? Um corpo que o mar ainda não devolvera?

Naquela noite Thereza não conseguiu cerrar os olhos. Abraçada com sua menininha ficou a imaginar o que seria de sua vida dali em diante.

No tempo em que Marcelino esteve fora a despensa da casa ficou exaurida. Novas contas começaram a aparecer. Então Thereza inventou mil coisas para vender. Sabia de seus dotes culinários. Começou a fazer massas em casa. Massas de todos os tipos de macarrão. E saía pelas ruas, vendendo, de casa em casa os seus produtos.

Foi nesse tempo que uma indústria de São Paulo começou a colocar macarrão no mercado. Mais em conta para os consumidores. Aquela fábrica precisava de uma grande quantidade de ovos para atender a freguesia que se espalhava pelo país afora.

Ao ler em “O Fanfulla”, o jornal que circulava na comunidade italiana, Thereza viu a mensagem do proprietário da grande fábrica. Pagava bom preço pelos ovos. Viessem de onde viessem. E garantia comprar tudo o que às suas mãos chegasse. Porque, sem ovos, italiano que se preze não faz massa alguma. Menos ainda o tradicional macarrão.

Thereza conhecia os segredos de conservação dos ovos por longos períodos. Aprendera este processo desde menina na vila em que nascera, na Vila de San Michelle, em Verona, na Itália.

Com as sobras das vendas de suas massas e mais as das peças de tricô e crochê que fazia comprou uma grande quantidade de cal virgem. Com o bom relacionamento que tinha com os comerciantes da redondeza foi juntando latas vazias de azeite. Eram latas com capacidade para vinte litros.

Pacientemente adquiria ovos em toda a periferia da cidade. Para alguns pagou com o que pode. Para outros pediu um tempo. Contou-lhes o que estava planejando. E se o comprador de São Paulo, que era dono já de uma grande indústria, pagasse um preço melhor na hora da entrega, para o produtor ela repassaria este lucro também.

Dia após dia ela embalava os ovos envoltos em uma mistura de água e cal. Enfileirava-os de baixo até o topo. Fechava a lata com solda a fim de que ficasse bem vedada. Juntou uma enormidade de latas. Centenas de grosas de ovos.

Despachou tudo de trem para Paranaguá. E ela junto de sua preciosa carga. Acompanhou o desembarque das latas do bagageiro na estação ferroviária que ficava distante do porto. Teve que tomar um carreto de aluguel para chegar até o ponto onde já se encontrava atracado o navio a vapor que a levaria até Santos.

Ficou ao lado dos carregadores que retiraram suas latas recheadas de ovos conservados em cal virgem umedecido. Fiscalizou até o serviço dos encarregados de acomodar os produtos no porão do navio. E só depois de verificar que tudo estava de acordo como ela queria subiu ao convés onde pode desfrutar a visão do mar. Do mesmo turbulento mar que há mais de uma década um pedaço de sua vida levara. Será que este mesmo mar levara agora o seu amor também? E assim, envolta em pensamentos, com a parca bagagem que portava em suas mãos dirigiu-se à minúscula cabine que compartilharia com mais três mulheres.

Thereza viajava feliz. Enquanto apreciava o ir e vir das ondas do mar, sentada em confortável espreguiçadeira no convés da embarcação, comia os quitutes que trouxera de casa. Alimentos não perecíveis. Do farnel que ela mesmo preparara em casa antes da partida.

Alimentava-se frugalmente. Contava os tostões que levara consigo. Os últimos que sobraram depois de haver comprado os ovos dos colonos e as passagens de trem e do barco a vapor.

O navio singrava as águas do Atlântico, não muito longe da costa brasileira.

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