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De 1822 a 2022 – Duzentos anos de independência! (?)

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Observando o quadro constatam-se aspectos que denunciam o que de fato estava em jogo nos albores da nova nação

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Sandro Luiz Bazzanella*

Cintia Neves Godoi**

Acima a pintura do artista plástico Pedro Américo eternizando no imaginário da “nação” brasileira, a bravura indômita, o ato heroico, destemido de Dom Pedro I ao dar um basta à condição secular de colônia de exploração de Portugal, ao qual se vinculava o Brasil ao longo de mais de três séculos.  O ato de Dom Pedro I apresenta-se pujante. Afinal, trata-se de afirmar a liberdade do Brasil, mesmo que tal condição custasse à vida de quem ousou proferir o grito da independência.

Se non è vero é bene trovatto”. O fato é que o quadro e a cena épica nele representada somente foram pintados sessenta anos depois do acontecido. Mais especificamente, em 1888 (um ano antes do golpe militar, que derrubaria definitivamente a monarquia e instauraria a República) sob encomenda do Museu do Ipiranga. Pedro Américo vivia em Florença, na Itália e, para compor a referida pintura provavelmente fez pesquisas em documentos e relatos da época sobre o acontecido. Mas, para além os documentos e relatos a cena precisa ser retratada em toda sua forma esplendorosa, demonstrando força, coragem, pujança e, soberania.

Observando atentamente o quadro constatam-se aspectos que denunciam o que de fato estava em jogo nos albores da nova nação. Em primeiro plano vemos o Príncipe Dom Pedro I rodeado de representantes das oligarquias rurais, senhores de engenho, proprietários de minas, entre outros membros da nobreza patrimonialista. Ilustres proprietários de escravos. Mantenedores do mais longo e lucrativo comércio de carne humana a ser consumida em trabalhos forçados nas minas, nos canaviais, nas plantações. Trezentos e vinte anos de escravidão. Homens, mulheres e crianças arrancados de sua terra natal, de suas comunidades, de suas famílias. Arrastados por deploráveis traficantes brasileiros e europeus  ao longo do atlântico até o Rio de Janeiro. Desembarcados os sobreviventes eram vendidos como animais. Nas fazendas, nos canaviais, nos casarios uma longa e tenebrosa sina de violência física, de exploração, de estupro, de degradação humana, de morte.

No plano abaixo e, estendendo-se a direita temos a guarda imperial com suas fardas brancas vistosas, montada em imponentes cavalos em posição de afirmação e, reverencia à vontade do príncipe, a partir de então imperador do Brasil. A imponência da guarda nacional é de tal magnitude comparável às tropas de elite do Imperador dos franceses: “Napoleão Bonaparte”. Uniformes brancos, limpos, repletos de adornos. Indicam solenidade oficial. Nada que exija esforço militar, enfrentamento de tropas portuguesas, ou qualquer outra alma insolente que pudesse brotar dos grotões e, porventura provocar alguma desarmonia entre as elites oligárquicas naquele contexto festivo.

 Mas, falta algo nesta representação da independência do Brasil, não acham? Falta o povo. Mas, existia um povo brasileiro? Portugueses, mercenários, índios e negros escravizados formavam um povo? De todo modo, sem povo não há necessidade de governo, de império e, muito menos de imperador. É preciso incluir o povo. No canto esquerdo do quadro vemos um representante do povo. Assiste aquela cena sem saber de fato do que se trata. Talvez esteja se perguntando: é a torcida do flamengo comemorando mais um título do campeonato brasileiro? É comemoração pelo aumento do “auxilio brasil”? Aumento do salário mínimo? O “coroné” comprou mais uma eleição?

De fato, nestes duzentos anos o quadro continua (quase) o mesmo.  Quase porque diferentemente desta pintura, no Brasil há povo. As oligarquias nacionais neoescravistas continuam drenando a riqueza socialmente produzida pela massa excluída de brasileiros.  A trajetória deste país e deste povo é marcada pela violência, pela exclusão, pela mentira promovida pelas suas elites escravocratas e neoescravocratas.  Mentem diuturnamente para manterem-se no poder.  Perpetua-se o analfabetismo funcional de toda uma população como estratégia de afastá-la da compreensão das vergonhosas contradições sobre as quais se assenta a rapina, a extorsão da riqueza nacional. Articulam setores da classe média em corporações como auxiliares, senão operadores das oligarquias nacionais. Conferem-lhes títulos nobiliários. Tornam-se doutores sem nunca terem alcançado o grau máximo de formação acadêmica para justificar o título de Doutor. Locupletam-se com salários imorais diante da miséria a que é submetida à população e, de quem se extrai seus salários.

Oligarquias que não tem escrúpulos no uso do monopólio da violência estatal. Transformam o Estado numa máquina de guerra contra a população explorada, expropriada secularmente da riqueza socialmente produzida. Após trezentos e vinte anos de escravidão negra, com milhões de seres humanos trazidos do continente africano para serem comercializados e, violentados pelo trabalho escravo, às elites oligárquicas pressionadas pela Inglaterra (potência industrial e econômica no período) decretam a abolição da escravatura (13 de maio de 1888), sem reparar as violências e injustiças cometidas. A injustiça social é a marca registrada na trajetória da colônia à independência. Injustiça que se manifesta na ação letal do Estado sobre os moradores da periferia, sobre os moradores de rua, sobre sem teto, sobre os sem-terra, sobre os povos indígenas, sobre as lideranças comunitárias, sobre os jovens afrodescendentes, sobre as mulheres na forma do estupro, da violência doméstica, da violência moral, do trabalho de cuidadoras não remunerado, do assédio sexual, dos baixos salários, do feminicídio. Injustiça social que se manifesta nos golpes ao longo desta trajetória de dependência que exibe a força das elites, mas também a existência de um povo. E, através desta existência, expõe também a insistência deste povo em alcançar melhorias, elegendo pioneiramente pessoas da classe trabalhadora, mulheres, em busca de alterar sua condição. Injustiça social manifestada no ódio das elites às conquistas alcançadas com luta e resultados de eleições por vezes em desacordo com elites, mas que geraram direitos sociais da empregada doméstica, do motorista, do jardineiro, do pedreiro do agricultor, dos filhos destes deserdados, que por meio de políticas públicas conseguem chegar ao ensino superior, a universidade…

No marco dos 200 anos da independência do Brasil um silêncio ensurdecedor. Nenhuma manifestação de revisão, de reconhecimento histórico da injustiça social perpetrada pelas oligarquias escravistas e neoescravistas. Mas, muitas manifestações deste mesmo povo, que diz nas ruas: se há fome, não há independência, dentre outros dizeres espalhados nas cidades neste dia. O governo representante destas oligarquias preferiu trazer de Portugal o coração de Dom Pedro I, conservado em formol, num trágico espetáculo de necrofilia, de reverência a um órgão do corpo humano pertencente ao príncipe que coube cumprir com as exigências oligárquicas e, econômicas inglesas de decretar a independência da colônia em relação à combalida metrópole “Portugal”. Reconheça-se incomodamente que a estratégia é coerente com a lógica da violência perpetrada ao longo dos trezentos anos de colônia, bem como dos 200 anos de independência. Neste 07 (sete) de setembro de 2022, o que assistimos é mais do mesmo já presente no quadro de Pedro Américo, encenação grotesca de oligarquias patrimonialistas, fisiológicas, preconceituosas e, suas corporações auxiliares que se locupletam com a miséria da nação e, que insistem em se manter no poder. Cotidianamente disseminam mentiras, apresentam-se como salvadores da pátria, produzem mitos, entre eles: “o da democracia racial brasileira”, da “hospitalidade do povo brasileiro”, da “lisura moral dos militares”, da “correção do caráter do capitão”, das “boas intenções dos cidadãos de bem (de bens?)”, da “beleza da mulher brasileira”, da “fartura destas abençoadas terras, onde em se plantando tudo dá” e, tantas outras falácias para ludibriar a atenção de milhões de homens, mulheres, crianças, jovens e idosos mantidos na linha da sobrevivência.

Ainda é preciso considerar no contexto da independência, a instabilidade política e institucional promovida pelas oligarquias, articuladas em torno da eficiente estratégia “é preciso que tudo mude para que tudo fique como está”. Desde a independência tivemos 7 (sete) constituições nos referidos anos, 1824 , 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988, constituindo uma média de 28,5 anos de vigência para cada constituição. Mas, sobretudo elas demarcam as soluções de continuidade nas relações de poder e de sua manutenção nas mãos das oligarquias e de seus asseclas. Assim, vimos constituir-se um império com o grito de independência que durou apenas 67 anos. Substituído pela “Proclamação da República” em 1889, que logo se tornou a República Velha, substituída pelo Estado Novo, que por sua vez foi substituído pelo Estado desenvolvimentista. Este colocado abaixo pela ditadura militar de 1964 a 1984, quando se refunda a “Nova República”, assaltada, privatizada e, atualmente guardada por pastores, milicianos e, toda sorte de “oportunistas de bem”.

Mas, também há o que comemorar nestes 200 anos a despeito de toda a violência e exclusão perpetrada pelas oligarquias, seus asseclas, ideólogos, capitães e coronéis é a capacidade de resiliência e de resistência dos brasileiros. Nestes quinhentos anos e, também nos duzentos anos de “independência” inúmeros foram os movimentos de resistência, entre eles como referência e memória história podemos citar a “Guerra de Canudos” e, a “Guerra do Contestado”. Inúmeros são os movimentos sociais que articulam Brasil adentro, no Brasil profundo, as pautas e agendas das minorias, dos movimentos feministas, dos movimentos lgbtqi+, dos movimentos indígenas, dos quilombolas, dos acampamentos que se fazem presentes em diversos centros de poder expondo que este povo sofre das narrativas construídas e estruturas de poder que os pressionam para a cegueira, mas que buscam o todo tempo se livrar destas amarras para outra vida, outro país.

Todos estes movimentos de resistência geram conflitos cujas marcas estão encravadas no solo deste imenso país mantendo viva a memória deste povo diante da violência e do sofrimento a ele infringido. Neste longo período, com organização e luta social, direitos foram alcançados, a participação nos desígnios da nação cada vez mais desejada e, em partes conquistada…  Não há outro caminho, que não seja a resistência até o momento da efetivação de fato e de direito da independência assentada na justiça social deste imenso país.

É neste secular e permanente contexto de injustiça social, violência, desprezo e, rapina por parte de suas elites, que os brasileiros resistiram, resistem e, insistem com alegria, criatividade, musicalidade, carnaval e futebol organizando-se em movimentos sociais, cultivando a solidariedade, a cooperação como formas de enfrentar os desmandos e a condenação a fome, ao analfabetismo, ao desemprego, aos baixos salários, ao racismo, ao preconceito, que cotidianamente suas elites cultivam… é este Brasil de gente, fervilhante em criatividade e solidariedade que vale comemorar neste 7 de setembro. Tudo mais é injustiça social e violência a ser condenada no tribunal da história.

Se você chegou até este ponto do texto, solicitamos a você leitor uma única gentileza como prova de sua sapiência. Convidamos você a tomar o Brasil como objeto de análise em suas profundas e seculares contradições. Compreendê-las é fundamental para que se possa de fato comemorar nos próximos 200 anos a independência deste gigante deitado eternamente em berço esplêndido.

*Sandro Luiz Bazzanella é professor de filosofia

**Cintia Neves Godoi é professora de Geografia

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