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Da crença no progresso a urgência de paralisar a máquina do desenvolvimento

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As concepções cosmológicas greco-romanas fundiram-se com a concepção judaica e cristã

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Sandro Luiz Bazzanella*

Cintia Neves Godoi**

Talvez se possa afirmar com certa segurança que a ideia de progresso acompanha os seres humanos desde a antiguidade aos dias de hoje. Na cosmovisão dos Gregos Antigos encontra-se a noção de physis, que se constitui a partir da intensidade abissal de relações entre matéria e energia, entre seres orgânicos e inorgânicos, entre vida e morte, entre vida biológica e vida qualificada. Neste contexto, os gregos observaram que em meio a caótica multiplicidade de fenômenos, de seres e de entes que em sua contingencialidade se apresentam na physis há necessariamente uma ordem, a partir da qual o ser humano poderia extrair sentido, finalidade ao cosmos, aos acontecimentos vitais. A plenitude desta ordem se realiza na polis, no espaço público compartilhado (ou na civitas no caso dos romanos), por meio do alcance da felicidade a partir do reconhecimento da ideia de bem, de verdade como condição de um bem-viver resultante da negociação (política) na constituição e preservação do espaço público.

As concepções cosmológicas greco-romanas fundiram-se com a concepção judaica e cristã, vinculadas à ideia de um Deus absoluto, criador do céu e da terra e, dos seres humanos a sua imagem e semelhança e, que impõe a lei a ser observada, obedecida.  Nesta perspectiva há uma ordem estabelecida no ato da criação. É necessário levar ao conhecimento dos mais distintos povos a obra da criação, condição necessária para o reconhecimento (leia-se progresso) dos seres humanos. É preciso demonstrar que o humano, obra da criação  compartilha com a humanidade (como totalidade) o projeto da salvação.

É neste contexto que se estabelece a ideia de pessoa humana, de sua singularidade compartilhada com os demais seres humanos ao longo dos tempos conformando a ideia de humanidade. Também, é sob tais prerrogativas conceituais que se constitui a ideia de história articulada a partir de uma concepção tripartite de tempo entre passado, presente e futuro. As categorias temporais, passado e futuro em suas especificidades constituem o presente como categoria temporal orientada em constante marcha rumo ao alcance do progresso, da perfeição, da salvação.  A compreensão da dinâmica histórica da humanidade enseja uma filosofia da história, a busca pela compreensão da razão (fio condutor) que explica e justifica os acontecimentos históricos, o que permite compreender o estágio de progresso da humanidade no contexto da obra da criação. A percepção deste estágio permite aos seres humanos, à humanidade intensificar os esforços e iniciativas de progressão (progresso) na confirmação dos desígnios circunscritos na obra da criação.

A modernidade herda os pressupostos greco-romanos assentados no exercício criterioso da razão no compromisso com a verdade, com a ideia de bem pressuposto indispensável para o compartilhamento político e ético do espaço público, mas, ao mesmo tempo, seculariza os pressupostos judaico-cristãos de humanidade, de tempo, de história e, de progresso linear e ascendente. Assim, na modernidade o progresso passa a se apresentar como o resultado da capacidade humana, científica e técnica de conhecer adequadamente os fenômenos naturais e humanos. O conhecimento das leis que determinam o movimento, a evolução, a estabilidade e o definhamento dos corpos em contexto macrocósmico (Física mecânica) e microcósmico (Biologia) permite ao homem apropriar-se da natureza e colocá-la a disposição do progresso humano, da humanidade.  Também o conhecimento da constituição físico-química (Física, Química, Biologia) dos corpos possibilitará aos seres humanos o retardamento da morte, a aceleração do crescimento e maturidade de plantas e animais vencendo os percalços da fome, da miséria e tantos outros males correlatos. O conhecimento das leis que regem o comportamento humano individual (Psicologia) e, o comportamento da vida em sociedade (Sociologia como fisiologia social – Saint Simon, ou como física social – Augusto Comte) será determinante para a reforma, ou mesmo transformação das sociedades modernas na afirmação do progresso.

Sob tais pressupostos constitutivos da racionalidade científica e técnica moderna se estabelece e se afirma secularmente a ideia de que a humanidade caminha rumo ao progresso. Estabelece-se a crença de que os avanços, de que o progresso material alcançado, ou almejado desvelará promover um futuro promissor à humanidade. Falta apenas mais uma nova tecnologia, uma nova descoberta, a afirmação de uma nova “verdade” e a felicidade, a paz e a concórdia se estabelecerão entre os seres humanos, se estenderá a toda a humanidade. No entanto, ao observarmos com atenção os fundamentos ontológicos sobre os quais se estabelece a crença no progresso, ou na atualidade em seu correlato, o desenvolvimento, constatamos que o progresso, ou o desenvolvimento almejado pela humanidade implica custos absurdamente elevados, senão violentos sobre a vida em sua totalidade, sobre a vida humana.

Ao observarmos a trajetória relatada, pesquisada e da qual se tem conhecimento histórico dos mais diferentes povos que passaram pela face da terra e, mesmo daqueles que se apresentam na atualidade percebemos em maior ou menor grau manifestações das mais distintas formas de violência, de barbárie. A forma mais brutal de violência, a guerra, que implica destruição, aniquilamento integral do outro se apresenta como uma constante entre os seres humanos. Lembremo-nos da escravidão no mundo antigo e, sobretudo na modernidade utilizada intensamente nas terras do novo mundo. Inicialmente territórios invadidos, pilhados, extorquidosdos povos originários, abrigaram o comércio transoceânico de carne humana brutalmente utilizada para intensificar o regime de acumulação de riqueza nos centros metropolitanos.

Na atualidade a ideologia do desenvolvimento apresentada na forma de discursos de promoção da qualidade de vida aos mais distintos povos e nações,  por meio de receituários e imposições aos países periféricos, a partir da expertise dos países desenvolvidos, resultou e resulta exatamente na continuidade das precárias condições humanas, sociais e políticas próprias de países periféricos. Tais receituários acatados pelas elites locais (nacionais) subservientes e, impostos sobre seus povos resultaram no aumento da desigualdade, da violência, da precarização das condições de vida de suas populações. Ou, mesmo se tormarmos com análise a ideologia dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável do milênio (ODs), propagados pelas agências internacionais, assistimos ao aumento planetário (in)sustentável da fome, da miséria, da eclosão de guerras que consomem vidas de civis, de seres humanos (mulheres, crianças, adolescente, jovens, homens) que se encontram em meio ao fogo cruzado da artilharia de ambos os lados. E o que dizer da demência coletiva pautada num modelo econômico financeirizado de promoção do consumo sob a lógica binária do crédito e débito frente aos eventos desencadeados pela emergência climática que coloca em jogo a continuidade da vida no planeta?

Tudo indica que se faz necessário e urgente refletir sobre os fundamentos da crença no progresso e em seu correlato contemporâneo o desenvolvimento. É preciso questionar intensamente porque entre todos os seres vivos existentes neste planeta apenas os seres humanos apresentam comportamentos tão deletérios, agressivos, grotescos em relação ao si mesmos, em relação às outras formas de vida? É preciso reconhecer que no conjunto das formas de manifestação da vida, a violência se faz presente, mas também é preciso reconhecer que tal violência se apresenta sob certos limites no que concerne à preservação da espécie. No caso dos seres humanos, estamos diante de uma espécie que não demonstra empatia pela sua própria sobrevivência não titubeando em articular sua engenhosidade na aniquilação do outro.

Também é preciso reconhecer que entre todas as formas de vidas existentes, tudo indica que apenas a vida humana se apresenta incompleta, em potência, mas tal condição existencial parece que não se apresenta como diferencial substancial, quando comparado com as outras formas de vida. O leitor ainda poderia advogar em defesa dos seres humanos como os únicos seres portadores de liberdade. Mas, no que implica a possibilidade da liberdade na definição do humano, se este se autoriza a continuar escravizando seus semelhantes? Submetendo-os a condições precárias de trabalho? Negando a parcela considerável de seres humanos o compartilhamento da riqueza socialmente produzida ao acesso aos bens materiais e imateriais (saúde, educação, moradia, água potável) necessários a manutenção da vida? Massas humanas mundo afora lançadas na miséria num mundo pleno de capacidades técnicas de produção de alimentos e de bens.  Porém, é fundamental ressaltar que, mesmo diante da paradoxalidade da condição da liberdade é preciso intransigentemente constantemente fazer a  defesa de pensamento, de reflexão e, de ação dos indivíduos assentada nos pressupostos da responsabilidade e, da justiça social.   

O momento histórico, social, local e mundial no qual estamos inseridos parece anunciar que o desenvolvimento científico-técnico e material alcançado não possui correlato possível com outros momentos históricos, sociais e políticos na trajetória humana. Mas, paradoxalmente constata-se, que o embrutecimento político caracterizado por ideias e práticas neofascistas, racistas, preconceituosas se intensifica diuturnamente. A privatização do individuo produtor e consumidor endividado se torna o modo de subjetivação determinante. Guerras, a brutalidade, a violência em suas várias formas com a vida humana e a vida em sua totalidade se tornam corriqueiras no cotidiano planetário. Mesmo sob tais condições precárias é preciso reconhecer que reside no ser humano a potência do não. Ou seja, de paralisar a máquina política, jurídica e econômica que alimenta a crença no progresso e no  desenvolvimento na forma brutal em que se manifesta. Porém, é preciso ter presente que a potência não eleva o humano acima das outras formas de vida, que também possuem em si a potência de ser, ou não-ser. Ou seja, no mais diversos entes, encontramos a potência de ser, ou não-ser. Afinal, numa semente reside a potência de se constituir numa bela árvore, mas dependendo das condições de solo, temperatura, umidade, entre outros fatores possui também a potência de não-ser, de não se constituir em uma árvore.

Porém, diferentemente das outras formas de vida, animais ou vegetais, o homem possui um mundo, fruto da linguagem, das relações humanas, da capacidade de projeção e execução de ações que transforma as condições vitais naturais no mundo humano. Ou dito de outra forma, o ser humano possui “inteligência”, esta capacidade de criar e interligar por meio da linguagem e signos, ideias e conceitos que mobilizam a ação comum, conjunta, política por excelência. É condição constitutiva da inteligência a criatividade, a criticidade, a disposição para pensar o inusitado, o pensado e o não pensado.

É sob tais condições, que é preciso reconhecer a falácia da inteligência artificial que se expressa na contradição em termos “inteligência” e “artificial”. Se considerarmos que a “inteligência” é um atributo humano que se apresenta no mundo como um fim em si mesmo, aquilo que é “artificial” é criação humana e, como tal apenas meio, portanto, um mero artefato advindo da engenhosidade humana. Ou dito de outro modo, nos mecanismos tecnológicos, programados a partir de algorítmicos não há inteligência, mesmo que se considere que tais meios técnicos que mobilizam quantidades abissais de informação e de conhecimentos produzidos pelos seres humanos ao longo dos milhares de anos que se encontra presente e atuante neste planeta. Tais registros mobilizados pelas variáveis algorítmicas pré-programadas oferecem possíveis respostas, cuja autoria pertence a “inteligência” atributo humano individual e coletivo intransferível. Tais considerações sobre este meio que sutilmente é nomeado de “inteligência” artificial se apresentam como o reconhecimento da engenhosidade científica e técnica humana na produção de artefatos, objetos, estruturas, que na condição de meros meios podem (dependendo dos interesses econômicos e políticos que o controlam) contribuir com desafios humanos e sociais em curso.

Portanto, ainda hoje, é nos seres humanos que reside a potência do não, de dizer não a barbárie, a violência, a mediocridade, a ignorância que destrói a tudo e a todos. Somente o ser humano pode questionar as prerrogativas das crenças no desenvolvimento, bem como as falácias discursivas de que a economia é um fim em si mesmo e, de que todas as relações vitais humanas tenham que ser submetidas a cálculos de custo e benefício. Somente aos seres humano é possível dizer não aos imperativos do fazer técnico e científico e, por reverso dar-se o direito de parar para pensar, contemplar sua ação e os impactos sobre os demais seres humanos, sobre a natureza, sobre o mundo. Ou dito de outra forma, é o ser humano o portador da potência de apreciar um bom argumento, de considerar sua validade ou não de acordo com a manutenção e promoção da vida.

No contexto de mundo em curso é crucial questionar os fundamentos da crença no progresso e no desenvolvimento e seu imperativo que ordena aos indivíduos façam e não pensem. Executem e não questionem. Produzam e ininterruptamente consumam a tudo e a todos. Aproveitem todas as oportunidades de consumo possível senão outro o fará.

Mesmo considerando que o ser humano não é o centro do mundo, de que a vida humana é apenas um momento efêmero na intensidade e profundidade do cosmos, cabe somente a ele a possibilidade de paralisar a máquina do desenvolvimento criada, creditada e acreditada por ele como finalidade por excelência da humanidade. Os limites programáveis da “inteligência” artificial não dão conta das condições de preservar e articular estratégias de compartilhamento do mundo humano, demasiadamente humano. Esta tarefa é exclusivamente política, exige a potência de ser e não-ser, na medida em que a política é a arte por excelência da negociação entre seres humanos para conviver, e conferir sentido ao mundo. Portanto é da potência do não que a continuidade da existência em sua totalidade deve tratar.  E, sobretudo, não nos confundam… Trata-se de paralisar a máquina do desenvolvimento para que o ser humano, portador por excelência da potência do pensamento possa contemplar, refletir e experimentar outras formas de viver e conviver no mundo e com o mundo.

**Drª Cintia Neves Godoi é professora de Geografia

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