A vila de Três Barras era um dos cinco distritos do município de Canoinhas
Meu pai começou muito jovem sua vida profissional na estação ferroviária da Lapa, como praticante da então Rede Viação Paraná Santa Catarina. Passou pela categoria de telegrafista e muito jovem ainda promovido a agente.
Logo que assumiu este cargo foi instalado na estação de Três Barras. E seus primeiros amigos foram os funcionários do escritório da companhia madeireira lá instalada quase dez antes. Conheceu minha mãe que morava na então estação de Canoinhas, hoje Marcílio Dias. Casaram-se. Minha irmã mais velha, Aline, lá nasceu. E como padrinhos dela meus pais escolheram o casal Fontana, que morava no chamado Quadro da Lumber, um conjunto habitacional, ao lado da empresa, destinado aos empregados mais graduados.
Assim teve início uma imorredoura amizade entre as famílias.
Quando eu nasci, há muitos anos já, morávamos na localidade de Marcílio Dias, distante 15 minutos de trem da pujante vila de Três Barras.
No quadro da Lumber — a grande madeireira americana — moravam meus padrinhos e os padrinhos de quase todos os meus irmãos. E meus pais eram padrinhos dos filhos de seus amigos.
Pelo menos um domingo por mês era consagrado para uma visita ao povo que habitava as margens do Rio Negro. Para nós era mais fácil ir para lá do que a Canoinhas. Mais cômodo e onde os amigos se encontravam. Lá sempre era o melhor lugar.
Os compadres iam para a nossa terra com seus carros. Um longo caminho, pois a rodovia seguia para Canoinhas e seguia por uma estrada que corria pelo alto dos morros que circundavam o nosso rio. O rio que deu nome à nossa cidade. Pela atual, que passa ao lado de suas águas, estava instalada um ramal da ferrovia.
O comboio ferroviário saía de nossa terra às 10h45 e às 11 horas já desembarcávamos na estação vizinha.
Éramos recebidos com festa. Sempre um lauto almoço à moda italiana na casa de um dos padrinhos. Café da tarde, com uma infinidade de tortas e bolos, em outra.
O encantamento maior era o cinema. Foi a primeira casa de projeção de filmes no Brasil.
Nas sessões de matiné assistia-se primeiramente a um jornal cinematográfico que mostrava as horrendas imagens da Segunda Grande Guerra Mundial, o panorama político do Brasil e dos principais países do mundo, um desenho animado — sempre do Pato Donald —, um episódio de um seriado, trailers das próximas exibições e, finalmente, o filme. Que eram projetados em partes. Cada parte, um rolo. Um intervalo para trocá-los. Acendiam-se as luzes. Ouviam-se gritos, vaias e assobios.
Mas os celuloides não eram novos. Arrebentavam múltiplas vezes. Luz acesa. Vaias e assobios.
Nem sempre se conseguia ver o final. Às cinco horas da tarde o trem partia rumo a Marcílio Dias. Somente na próxima ida para a terra da grande serraria nossos amigos nos contavam o final das chorosas histórias de amor ou das hilariantes comédias.
Cassino Lumber era o nome principal daquele prédio. Onde o jogo grassava abertamente nas mesas de pano verde. Em seu palco apresentavam-se companhias teatrais vindas da cidade do Rio de Janeiro, capital do Brasil. Era o local de grandes bailes também.
Enfim, o famoso prédio era o centro de recreação dos habitantes daquele território e das redondezas.
Mas a vila de Três Barras também tinha as suas atrações. Era lá que se localizavam as casas comerciais, o hotel, um salão de baile — muito concorrido nas tardes dançantes e soirées — e claro, a Igreja de São João Batista.
A igreja pertencia, naquela época, à Paróquia de Santa Cruz. A vila de Três Barras era um dos cinco distritos do município de Canoinhas.
Uma grande multidão sempre acorria a fim de participar das festas realizadas em benefício da então capela. Festas realizadas em homenagem a seu padroeiro, São João Batista, no dia do santo, caso fosse um domingo. Se não, no próximo.
Entre os consagrados festeiros e festeiras encontravam-se os nossos padrinhos. Olga Righetto Ferreira (seu marido Arthur já era falecido), Lília (Fontana) e Vitorino Ferreira — o seu Vitoca —, minha mãe Nena e outros mais. Festas sempre com um lauto almoço, churrasco no espeto de madeira, assado diretamente em um braseiro no chão, concorridos leilões, jogos, café com uma enorme variedade de bolos e demais quitutes.
A cozinha era montada em um barracão ao lado. Com um grande fogão de lenha. A peça mais importante da festa.
Lembro-me do tempo em que as férias escolares ocorriam na segunda quinzena de junho e então íamos junto com mamãe. Ela era sempre incluída como festeira, pois das mãos dela sairiam as mais famosas coxinhas de galinha e os mais deliciosos pastéis da região.
Chegávamos na estação de Três Barras às onze horas da manhã. E a nossa espera já se encontrava o meu padrinho Vitoca com sua pequena caminhonete destinada a carregar toda a parafernália que minha mãe portava a fim de bem desempenhar suas funções.
Ao chegar no local da festa ela já começava a preparar a massa e a carne para a confecção dos pasteis. Que em seguida eram fritos em banha quase fervente pelas demais auxiliares.
Para o preparo das coxinhas dona Olga e minha madrinha Lília já deixavam cozidas porções de galinhas cortados, artesanalmente, anatomicamente perfeitos. Não se usava frango como agora. E galos também não. Salvo se fossem jovens ainda e de carne tenra.
Para o preparo desta iguaria minha mãe usava o molho resultante do cozimento das aves. Em uma frigideira colocava um mínimo de gordura e nela, após dourar o trigo, despejava o molho. O resultado era uma deliciosa pasta homogênea, de textura menor que uma massa e mais firme que um creme.
O sabor desta pasta era inigualável, pois os pedaços de galinhas haviam sido cozidos com aqueles temperos que mamãe, Lília e Olga aprenderam a fazer com suas mammas italianas.
Com a agilidade de suas mãos minha mãe juntava nacos da carne de galinha, envolvia-as em torno de um osso juntamente com aquela saborosa pasta. Agora era hora de encobri-las com ovos bem batidos, depois passá-las em uma grossa farinha feita em casa com pão torrado — hoje conhecida como farinha de rosca— e fritá-las em banha bem quente até adquirirem um tom dourado próprio para deixar a freguesia com água na boca.
Quase cinco horas da tarde. Hora de corremos para a estação ferroviária e pegarmos o trem de volta para casa. Para nossa encantada Marcílio Dias.
Estas histórias eu teria narrado aos alunos de uma escola um uma manhã de arte literária para a qual fui convidada. Como eu não fora incluída como oradora — apenas para ovacionar aos demais— deixo aqui o relato que lá teria feito.