domingo, 28

de

abril

de

2024

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A informal união de Pedro e Thereza

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Pedro era um poeta, um sonhador. Thereza era a sólida rocha

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Certa noite de verão, estavam a tomar um bom chianti italiano e a conversar na varanda dos fundos. Comemoravam o sucesso de sua sociedade. Pedro não tirava os olhos do rosto dela que refletia à luz do luar. Permaneceu alguns minutos em silêncio, fitando-a incessantemente.

— O que está pensando com este olhar estático, meu amigo?

— Admirando a sua força interior refletida em seus olhos, em seu rosto.

Ato contínuo, tomou as mãos dela entre as suas. Não sabia se movido pelo vinho ou se pela aura que o momento envolvia, num repente soltou tudo o que ia em sua alma há tanto tempo.

— Minha amada, você é a mulher por quem ansiei em toda a minha vida. Amo-a desde o primeiro minuto em que a vi há muito, muito tempo. Contive-me até hoje em respeito à sua dor, em respeito ao seu luto por um homem que não se sabe onde foi parar. Tem de haver um jeito de podermos viver juntos para o resto de nossas vidas.

Thereza deixou suas mãos presas nas mãos dele. Lágrimas surgiram em seus olhos. Não sabia se de emoção por ouvir suas palavras, ou se por pensar que aquela união jamais se consolidaria.

Nada falou. Ele insistia. Minutos de silêncio insuportável quebrados apenas pelo murmúrio de aves e insetos noturnos. Olhavam-se fixamente nos olhos. Quando ela tentou falar, sua boca foi selada por um beijo avassalador. Um choro convulso tomou conta dela. Mas não o afastou. No fundo de seu eu ela sabia que a paixão já a corroía há muito tempo também. Só não queria admitir. Para ela, Pedro era um amor proibido. Desde pequena ligada às tradições religiosas, jamais poderia unir-se a um homem sem a bênção da Igreja. E isto não seria possível.

Passaram-se dias e os dois só se olhavam de longe. Pouco falavam. Certa noite, Frei Lazzaro, um padre italiano, amigo deles, chegou, de surpresa — de surpresa para Thereza— para jantar. Ali permaneceu por horas. Ficaram a falar sobre os acontecimentos políticos da Itália, sobre óperas. Entre uma taça de vinho e outra, Pedro e ele cantavam famosas árias de Verdi. Até que, finalmente, o sacerdote resolveu usar da palavra e contar para Thereza que viera a pedido de Pedro para abençoar a união deles.

— Sei que oficialmente vocês não poderão se unir em matrimônio. Mas não é justo o meu amigo Pedro continuar morando naquela hospedaria enquanto o espírito dele permanece sempre a seu lado. Estou hoje aqui para lhe dizer que o Pai que está no céu abençoa a união de dois seres que se amam. Se me permitirem, amanhã estarei aqui para um jantar de comemoração com todos os amigos de vocês. E Pedro, finalmente, poderá vir morar nesta casa e viver a seu lado para sempre.

Ele se chamava Pedro, mas a pedra era ela. Pedro era um poeta, um sonhador. Thereza era a sólida rocha. Um precisava do outro para viver. Completavam-se.

No dia seguinte, ele fretou um carreto onde colocou sua mudança composta, em sua maioria, por livros, jornais, revistas, muitos manuscritos e folhas de papel em branco, além de suas roupas e calçados.

Foi muito simples a cerimônia que uniu o feliz casal. Com aplausos e vivas de muitos amigos que vieram abraçá-los.

Desde o dia em que Frei Lazzaro clareou sua mente, abençoando sua união com Pedro, Thereza tirou um grande peso de dentro de seu coração. Muitos anos já haviam passado desde que Marcelino sumira sem que se soubesse o que teria acontecido com ele. Ela encontrara um homem gentil que a ajudara a reerguer-se.

Dívidas antigas foram saldadas. A trattoria crescia a olhos vistos. A fama da culinária de Thereza corria pela cidade. Faltava o bulício de crianças ao redor. Nena já estava crescida. Acostumara-se a uma vida sem irmãozinhos para conviver com ela.

Em um domingo, após o almoço, enquanto Pedro fazia a sua sesta, Thereza conversou a sós com Petronilla Rosina.

— Filha minha, eu acho que tenho uma grande novidade para lhe contar. Espero que você fique tão feliz como Pedro e eu ficamos. Logo você terá a companhia de um irmãozinho, ou talvez de uma irmãzinha.

A menina olhou para a mãe com olhos esbulhados.

— Mamma, então agora vamos ter um pai na nossa casa? Você disse que eu não poderia ter um irmãozinho porque nesta casa não tinha um pai.

— Filhinha minha, Pedro será o pai do bebê que está a caminho. Ele ajudará a cuidar desta criança.

Nena saiu correndo. Fechou-se em seu quarto de onde não saiu nem para fazer o seu tradicional lanchinho da tarde. Thereza foi atrás dela. Ninou-a como a um bebê.

— Filhinha, você sempre será a minha Neninha, a minha linda menina. Não importam quantas crianças venham no futuro a morar em nossa casa. Você é a única. Você é a lembrança do meu Marcelino.

Ao ouvir estas palavras, a menina desatou em um choro convulso. Um misto de saudade do pai e de um ciúme antecipado. Ela fingia não dar muita importância a Pedro mas no fundo sabia que ele era o tudo que elas tinham agora. Amava-o como amara seu pai. Mas não queria admitir. Achava errado um amor paterno que não fosse o marinheiro que tinha uma argola de ouro em uma das orelhas e que prometera levá-la a conhecer todos os mares do mundo.

Quando nasceu o menino de Thereza, a alegria de ver um bebê a chorar em casa contagiou a todos. Mamma Angela deixou a casa de Stella e mudou-se para junto de Thereza. Afinal, há alguns anos ela já era a Nonninha que sempre cuidou de todos os netinhos ao nascer.

Frei Lazzaro batizou o pequeno na Igreja do Bom Jesus. O mesmo nome de seu pai. Era o Pedrinho de Mamma Thereza. Pedro Gobbi Filho no registro oficial.

Pedro encontrava-se envolvido a avaliar seu estoque de vinhos na cantina quando recebeu a visita de um velho amigo que viera acompanhado de um desconhecido cavalheiro, vestido como se vestiam os magnatas de então.

— Mas que ventos trazem você aqui, finalmente, Stefano? — perguntou Pedro após um fraterno abraço no amigo.

— Apresento-lhe aqui o senhor Nero Moragni, um conterrâneo nosso que acaba de chegar de São Paulo. Quer instalar uma grande refinaria para produzir açúcar em grande quantidade.

— Mas, me perdoem minhas dúvidas. Por aqui nem temos canaviais, senhor Nero!

— Mas nem precisa. Podemos trazer de trem desde Alexandra. Lá em baixo os canaviais são extensos e não estão sendo aproveitados.

— O senhor Nero —continuou Stefano— quer fazer uma grande fábrica aqui na cidade. Mas precisa de muito capital para iniciar esta empreitada. Então, estamos procurando os patrícios bem aquinhoados como o amigo Pedro, para juntar o montante necessário para que ele possa dar início a esta grande organização que levará o nome de Curitiba e do Paraná para todo o Brasil e quiçá ao exterior.

— Mas isto é uma coisa que precisa ser muito bem pensada. — retrucou Pedro, já meio ressabiado.

— Não se preocupe, senhor Pedro, tenho comigo o aval de vários bancos e de alguns eminentes moradores desta cidade. É um grande projeto. Dentro de alguns anos o capital que cada um investir poderá se triplicado.

— Mas por que o senhor não forma logo uma Sociedade Anônima, senhor Nero?  Desta forma todos seremos sócios e ficará mais fácil para se conseguir o capital necessário no mais curto espaço de tempo.

— Acontece, senhor Pedro, que o terreno em que a refinaria de açúcar será construída já se encontra em meu nome e já fiz uma grande reserva de cana-de- açúcar lá pelas bandas debaixo da serra. Tudo já consignado para me mandarem logo que a construção esteja pronta e o maquinário instalado.

Pedro prometeu pensar no assunto. Algo dentro dele dizia que não daria certo.

Uma semana depois, o amigo e o tal de Nero retornaram. Vieram munidos de uma pilha de documentos atestando a idoneidade do empreendimento e do empreendedor.

Mesmo assim, Pedro esquivou-se. Precisava falar com Thereza. A importância solicitada, como empréstimo, era muito grande. Se entregassem suas economias agora, com a esperança de receber em dobro, ou talvez até o triplo dentro de alguns anos, era algo tentador. Sabia que era uma aventura. Que poderia não dar certo.

Um mês após insistentes visitas, Pedro e Thereza, finalmente, cederam aos rogos do amigo e do magnata Nero. Nesse tempo, ambos almoçaram e jantaram inúmeras vezes na trattoria. Sempre pagaram na hora. Adquiriram também vinhos, azeite e outros produtos da cantina de Pedro. Nero tornou-se o novo amigo da família.

Passaram-se os anos. Stefano rareou suas visitas. Nero sumira. Mandava dizer que qualquer dia voltaria a saborear as massas preparadas por Dona Thereza, mas no momento andava muito ocupado com sua indústria.

Pelo que se via e pelo que se sabia, a indústria de açúcar ia de vento em popa. Centenas de sacas eram embarcadas diariamente nos cargueiros que se dirigiam ao porto de Paranaguá de onde tomariam os mais variados destinos.

Estava na hora de ampliar tanto a trattoria como a cantina. Para isto, precisavam de muito dinheiro. Afinal, se a refinaria estava indo tão bem, era hora de receberem o valor do empréstimo acrescido dos prometidos dividendos. Em uma tarde, Pedro e Thereza foram até os escritórios da grande fábrica de açúcar. Pediram para falar com Nero.

— Quem deseja falar com ele? —Perguntou, respeitosamente, o moço da recepção. Pedro entregou seu cartão de visita. Logo o moço retorna.

— O senhor Nero quer saber do que se trata. Está muito ocupado e não tem tempo de recebê-los.

Thereza já conhecia bem o homem com quem se casara. Viu engorgitarem-se as veias em sua testa e em seu pescoço. A vermelhidão tomou conta de seu rosto.

— Calma, Pedro, calma. Sente-se aqui. Vamos pensar.

— Pensar? Pensar o quê?

E, num impulso voou porta adentro. Encontrou um Nero a ler displicentemente um jornal, com as pernas sobre a mesa, tendo na mão um enorme e fumegante charuto cubano e ao lado uma taça de vinho.

— Vim aqui buscar o dinheiro que me deve, senhor Nero.

O falso magnata abaixou as pernas, deu uma longa baforada em seu charuto.

— Mas quem é o senhor que entra aqui em meu escritório como um furacão?

— Você me conhece e muito bem. Esteve muitas vezes em nosso estabelecimento. Tanto insistiu e tanto prometeu que acabamos por lhe emprestar nossas economias para você dar início a este império açucareiro.

— Por favor, sumam daqui antes que eu chame a polícia. Não os conheço e nunca vi vocês em minha vida. Construí este império com meu suor e nada devo a ninguém e muito menos a uns pés rapados como vocês.

Não havia documento algum para provar. Muito menos papéis assinados. O empréstimo realizara-se na mesma boa-fé com que tantos patrícios faziam suas transações comerciais entre si. Na honra de um fio de bigode.

Não foram apenas Pedro e Thereza os lesados. Muitos outros italianos caíram naquele desumano golpe. Incluindo o amigo Stefano que de desgosto e remorso amanheceu certa manhã, após uma noite de bebedeira, pendurado em uma árvore com uma corda em seu pescoço.

O sonho de ampliar a cantina e a trattoria foram postergados. Continuavam a servir as costumeiras refeições e a vender não só importados da Itália como os produzidos pelos colonos italianos.  

A companhia ferroviária, no intuito de aumentar seus lucros, demitiu inúmeros funcionários. O fato ocorreu da noite para o dia. Mais da metade da freguesia habitual sumira. Alguns ainda foram conversar com Pedro e Thereza prometendo acertar o que deviam logo que recebessem o que tinham a haver. Percebia-se na face dos que ainda vinham fazer suas refeições que não estavam contentes tanto com o excesso de trabalho como com a demora em receberem seus proventos.

Como o tempo passava e não acertavam suas dívidas, Pedro teve de ser franco com eles. Não seria mais possível continuarem a fazer suas refeições sem acertarem os débitos que se acumulavam já por alguns meses. Os fornecedores, tanto da trattoria como da cantina, também não tinham como esperar o pagamento.

Pedro sempre doara aos necessitados até os capotes que usava na estação fria. Não estava dentro de seu eu ir atrás dos devedores.

— Se não podem pagar, paciência. Pelo menos enquanto foi possível não os deixamos passar fome por falta de dinheiro. Ainda somos jovens, temos muita vida pela frente.

Com a diminuição do número de refeições, e com a escassa venda de produtos na cantina, escasseou também o dinheiro. Como faziam falta as economias roubadas pelo falso magnata Nero.

Petronilla já era uma bela e sonhadora adolescente. Ajudava em tudo para que não precisassem pagar empregados. Pedrinho, um menino cheio de vida. Despesas com estudos, roupas, calçados.

Tão acostumada a ser chamada de Nena desde que nascera, raramente atendia pelo seu nome. Extasiava-se por horas seguidas a observar as estrelas na janela de seu quarto. Conhecia todas as constelações pelo nome. Quando os jornais começaram a noticiar a passagem de um grande cometa pelos céus de Curitiba, Nena colocava o despertador para acordá-la muito tempo antes da hora prevista pelos astrônomos. Certa noite ela até soltou um grito ao ver aquela luminosidade aparecer já atrás da estação férrea. A luz era tão intensa que clareava a cidade inteira. Por noites seguidas lá estava na janela à espera do famoso visitante noturno. Ela jamais se esqueceria do assombro que a dominou na noite de 18 para 19 de maio de 1910, quando teve a impressão de que era só estender a mão e alcançar o astro do século.

Foi após a passagem do cometa Halley que Pedro e Thereza começaram a pensar seriamente em procurar outros meios para viver. Alguns ferroviários amigos, que eram seus fregueses, contavam das novas linhas férreas que estavam sendo construídas.

Nessa época, a Rede Ferroviária começava a ramificar sua malha estendendo-a em várias direções na região sul do país. Em 1895, já havia sido inaugurada a estação férrea de Rio Negro, às margens do rio de mesmo nome. A intenção da alta direção era construir uma linha desde o Porto de São Francisco até a fronteira do Brasil com a Argentina.

Uma ponte férrea sobre o rio Negro fazia a ligação até a já florescente vila de Mafra. A partir dali os trilhos seguiriam no sentido oeste. Necessário era prover a alimentação do grande contingente de operários que abririam aquele caminho. Uma grande equipe formada por engenheiros, pedreiros e artífices acompanharia de perto todo o trabalho. Como o pessoal da Rede Ferroviária já conhecia a cozinha de Dona Thereza, convidaram-na para encarregar-se de preparar o alimento de todo aquele povo.

Foi o impulso que faltava para uma mudança de vida. Em um cargueiro acomodaram o que poderia ser levado junto e partiram em direção à cidade de Rio Negro. Pedro permaneceu em Curitiba a fim de vender o sobrado, os móveis da trattoria e da cantina, e liquidar as dívidas remanescentes. Thereza partiu com seus filhos Petronilla e Pedrinho. Nonninha Angela ficaria por algum tempo morando com a filha Stella.

Em um vagão bagageiro foi montada a cozinha e um quarto onde dormiriam. Logo que a construção do primeiro trecho teve início, a culinária de Dona Thereza começou a funcionar a todo o vapor. Era estranho preparar alimentos em um pequeno fogão meio portátil, não muito grande, todo de ferro. Os panelões eram grandes o suficiente para se preparar comida para um grande número de pessoas.

Ela não se deu muito bem com o tamanho da mesa onde estendia a massa que seria recortada em tiras. Não poderia jamais perder a fama que fizera com seus talharins e aletrias. Nem sempre encontravam tomates suficientes para atender à demanda. O seu tradicional molho deveria ser consumido, no máximo, em dois dias. Mas o seu tino de mestre-cuca jamais deixou de servir as iguarias mais apetitosas àqueles homens que pareciam devorar uma galinha inteira de uma só vez.

O comboio com o pessoal da construção avançava lentamente. Era preciso abrir o trecho. Com um maquinário apropriado de grandes proporções, movido a vapor, enormes troncos de árvores eram derrubados. Cortes eram efetuados nos morros. O terreno precisava ser aplainado e compactado. E muita pedra britada sobre ele foi espalhada para só então deitarem-se os dormentes. A colocação dos trilhos sobre eles deveria obedecer a uma linha milimetricamente traçada. Eram necessários dois homens para mover as grandes chaves de boca que apertavam a porca e o parafuso na tala de junção.

Havia trechos em que o comboio da construção permanecia em um mesmo local por semanas seguidas. Viadutos, pontes e pontilhões de ferro estendiam-se sobre regatos, fontes, rios e abismos. Raros aterros em alguns pontos apenas. Quanto mais voltas e contornos fossem dados, mais longa seria a estrada. Transpuseram pedaços de uma pequena serra. Em determinado ponto, o terreno bem rochoso obrigou a uma obra mais demorada. Tiveram que realizar a escavação de um túnel. Com muito cuidado, o trabalho foi executado. Os engenheiros responsáveis que acompanhavam todo este trabalho eram extremamente meticulosos.

A empresa era de um tal Percival Farquhar, um magnata americano que aceitara a tarefa da construção com a promessa de se apossar de uma gleba de terras que se estenderia por quinze quilômetros de cada lado da via férrea. Território pertencente aos índios e caboclos que naquela região viveram desde sempre.

Thereza dedicava-se a preparar a comida em sua cozinha e desconhecia estes tristes fatos. Aprimorava-se a cada dia mais em servir pratos diferentes para que os pobres operários, que na linha labutavam desde que amanhecia o dia até que o sol se pusesse, tivessem refeições fartas e nutritivas.

(continua)

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