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A Cozinheira de Castamar

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Sociedade androcêntrica

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Fernando Múñez é um escritor contemporâneo que se transporta para a Espanha do século XVIII retratando as mazelas sociais deste século, a saber, no período da Guerra e Pós-guerra da Sucessão, em meio ao cotidiano, intrigas e amores arrebatadores do Ducado de Castamar. Essa narrativa foi adaptada pela Netflix para um seriado de doze capítulos, o qual, muito embora altere sobremaneira os fatos do enredo original, tem uma linguagem tão bem trabalhada quanto a do livro.

Além do amor ser, como na grande maioria das longas obras literárias, o refrão e o escopo da narrativa, há outros fatores dignos de menção e análise. Um deles é a segregação feminina. Numa Espanha patriarcal, onde o único destino de uma jovem era o casamento, aquelas que se desviavam desse caminho eram vistas como párias. Restava-lhes, se tivessem aptidão, os serviços domésticos em casas de nobres, em raros casos, ser preceptores, ou, como ocorria com a grande maioria, perambular pelos becos onde eram solicitadas para o usufruto carnal.

Clara Belmonte, uma das protagonistas, vê-se destituída de sua posição social após o falecimento de seu pai, o qual era um médico que morrera no campo de batalha defendendo o rei, mas, por um mal entendido, fora acusado de traição. Então, ela, sua mãe e irmã foram lançadas à miséria, ficando num limiar, uma vez que não eram mais nobres, e tampouco se identificavam com as serviçais, pois tiveram uma educação requintada.

Na medida em que sua mãe lhe ensinara a arte da culinária, começa a trabalhar para o Duque Dom Diego e, com isso, modifica toda a dinâmica da família Castamar. Primeiro, envolve o ducado com seus pratos peculiares, dignos dos mais elaborados experimentos. Nesse ínterim, o amor entre ela e Diego se amalgama aos sabores e sensações que desprendem de suas receitas.

Porém, as convenções sociais são severas, e não facilitarão a aproximação entre uma cozinheira e um membro da nobreza espanhola. O mesmo acontece com a personagem Amélia Castro, a qual ficara órfã e herdara as dívidas do pai e uma mãe enferma para sustentar. Como naquele outrora não havia possibilidades para uma mulher, como a de ter uma profissão para o seu sustento, por exemplo, ela se rende a ser manipulada, vilipendiada e desonrada para poder sobreviver. No entanto, ainda assim, tenta contornar essa realidade atroz:

Soube que, se se deixasse levar novamente pelas suas emoções, como estivera quase a fazer debaixo do azinhal, isso podia levá-la a perder o seu nome, a sua desgastada credibilidade e, em última análise, a sua vida enquanto menina de bem. Amélia era apenas uma boneca de trapos entre aqueles gigantes, mas disse a si mesma que até as bonecas de trapos tinham direito a lutar pelo seu futuro (MÚÑEZ, 2020, p.231).

A sua situação se agrava quando se envolve e se apaixona por Dom Gabriel, o irmão negro de Diego de Castamar, o qual fora criado como membro da família, mas que, a despeito disso, é desprezado pela sociedade, sendo impedido de participar dos eventos da alta aristocracia e de se casar com uma mulher branca.

Entre o rol de mulheres que sofrem a misoginia, se sobressai Sol Montijos, pois muito cedo percebera as hipocrisias sociais e tentara sobreviver fazendo bom proveito de sua beleza, como é perfeitamente descrito no excerto abaixo:

Poucos sabiam da maldição de possuir os dons de Afrodite, e como de repente a ingenuidade e a beleza jogavam contra uma pessoa até a fazer cair no infortúnio. Sol sabia. Desde a puberdade que experimentara como o seu atrativo podia ser um elemento contraindicado à ascensão social. Aprendeu-o enquanto caminhava pelas reuniões da sociedade, levada pelo pai para se exibir como gado na feira. Naqueles momentos, ocorria algo desmesurado e perigoso. Ela, sem ter consciência disso, convertia-se no centro das atenções de todos os homens, e então as pupilas destes, carregadas de desejo e lascívia [...]. Muitas pobres viam-se acorrentadas aos elos de aço dos elogios e dos namoricos, aos regalos para os sentidos que elevavam o ego, e desperdiçavam a juventude em devaneios estúpidos até ser já demasiado tarde. Ela entendera desde bem jovem que, na maioria dos casos, os desejos dos homens eram mais fortes do que eles, e que faziam qualquer coisa para os satisfazer. Este conhecimento essencial foi uma peça-chave para o seu êxito. Ao entender aquela sociedade androcêntrica, fez do seu corpo um prêmio, ciente de que, quando deixasse de ser jovem, só a fortuna e a posição que tivesse conseguido obter atrairiam as atenções. Na vida, só conta a riqueza, o poder do teu estatuto e a saúde para desfrutar de ambos, pensava sempre (MÚÑEZ, 2020, p.496).

O contexto em que estava convertera-a em uma oportunista, capaz de tudo pela sobrevivência, para garantir as aparências e, mormente, o padrão de vida elevado. Naquela sociedade androcêntrica, isto é, comandada e direcionada pelos e para os homens, ela tentou fazer da satisfação das vontades deles sua ascensão e manutenção dentre a elite de seu país.

Diferente de Sol, Clara, durante os meses em que fora cozinheira chefe de Castamar, sofrera, sobretudo, perseguições da governanta Úrsula, quem a detestava por ela ser a representação de uma possibilidade de ruptura social, como declara:

Tudo lhe parecia irreal, nada fazia sentido. Há 13 meses, essa rapariga era uma simples oficial de cozinha que encontrara à chuva no pátio das traseiras, e agora ia acabar por governar os desígnios de Castamar. Aquilo revolvia-lhe as entranhas, fazia-a ver a jovem como uma intrusa, um ser grotesco nascido dessa nova era onde os estratos sociais se misturavam. Até o próprio rei o promovia, enobrecendo fidalgos, outorgando cargos importantes a famílias menos ilustres. Deus bendito, até onde vamos chegar? (MÚÑEZ, 2020, p.772).

Úrsula representa o arquétipo do conservadorismo hipócrita, um dos maiores males daquele século e que ainda respinga seus ditames na atualidade. Ou seja, ela, também oriunda de um passado de miséria e segregação, sendo vítima de uma sociedade androcêntrica, em que fora obrigada a se casar e suportar a brutalidade do marido, fugira e, assim como Clara, encontrara refúgio como serviçal de Castamar. Porém, ao invés de ansiar pela mudança de paradigmas e pela dissolução das classes, quer mantê-las, julgando os que as repudiam.

No enredo, o amor impulsiona para que, parcialmente, algumas barreiras sejam transpostas. Diego, por exemplo, apaixonado por Clara e fazendo uso de sua posição privilegiada, consegue interceder ao rei para que lhe permita desposá-la, devolvendo-lhe o título de nobre e tornando-a, assim, a duquesa de Castamar. Entretanto, ela impôs a seu esposo a condição de que nunca abandonaria uma das atividades que mais adorava, isto é, cozinhar, o que já era uma grande vitória para mulheres aristocratas do século XVIII, às quais não eram permitidas as escolhas e praticar seus gostos. Inclusive, nas últimas páginas, a irascível Dona Úrsula é enternecida pelo sentimento que lhe dedica o afetuoso mordomo-chefe.

Sol Montijos, por sua vez, não tem um desfecho tão agradável. Apesar de ter lutado arduamente por sua independência, é enfraquecida pelas convenções nas quais não se adequa. Ademais, Amélia Castro e seu amado Gabriel Castamar não conseguem vencer o racismo, pois a união de um casal miscigenado era inconcebível naquela época.

Há, também, a temática da homossexualidade, em que alguns personagens mostram a triste realidade de um longo período histórico em que ser homoafetivo era considerado crime punível com forca ou desterro. Quando descobertos, eram proscritos, e toda a linhagem marcada pela marginalização.

Dessa forma, A Cozinheira de Castamar, além de ter uma linguagem lapidada, que acompanha o clímax dos acontecimentos, sendo ora ríspida, ora terna, algumas vezes sensual, outras metafórica, é uma ótima narrativa para se pensar, entre outros, nos problemas ocasionados pela misoginia, pela supremacia de classes e pelo racismo. Como vemos no enredo, a realidade do século XVIII era muito mais hostil, apesar de que, se analisarmos nossa conjuntura, encontramos seus resquícios em nosso cotidiano. Assim, é nosso dever impedir que se alimente e se prolifere qualquer tipo de preconceito. Tudo começa com a prática da leitura, da análise, da reflexão e, por conseguinte, a ação.  

(MÚÑEZ, Fernando. A Cozinheira de Castamar. Porto: Porto Editora, 2020).

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