sexta-feira, 26

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abril

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2024

ACESSE NO 

A cozinha de Mamma Angela

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Com uma invejável agilidade espalhava sobre ela homogêneos montículos do recheio em uma correta linha horizontal

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Não havia mais como Marcelino Castagna prolongar seus estudos em Verona. Diariamente, ao lado de seu pai, desempenhava suas funções, aprimorando seus conhecimentos nas lides náuticas. Pietronella e Domenico andavam apreensivos por vê-lo sempre solitário sem interessar-se mais pelas festas dos fins de semana na Piazza San Marco.

Com a saudade a sufocá-lo precisava desabafar seus anseios. Certa noite, após o jantar, deitou a cabeça no colo de sua mãe e começou a desfiar o seu rosário de confidências. Contou-lhe da paixão que sentira ao ver a mais bela mulher do mundo. Sua mãe o entendeu bem a fundo. Ajudou-o a convencer seu pai a dirigirem-se até a moradia dos Cailoto, em Verona, e a pedirem, em seu nome a mão de Thereza em casamento.

— Filho meu —ponderou calmamente Domenico —, não acha que é muito cedo pensar em casamento? Você é tão jovem ainda e nem se fixou em um serviço com o qual possa sustentar uma família. Vamos aguardar mais algum tempo. Verá que esta paixão é algo momentâneo e logo você estará de beiço caído por outros rabos de saia.

— Desculpe-me, meu pai. O senhor não me conhece. Não é apenas uma paixão. É um amor profundo o que sinto por ela. Dentro de mim eu a vejo como alguém que vive há séculos a meu lado. Se meu pai a visse quando ela dirige aquele pequeno carreto carregado com os produtos da lavoura e os vende na praça Bra, em Verona… A desenvoltura com que ela faz as compras que a sua família precisa. As suas mãos no tear a fiar os belos tecidos de seda ou de lã. O sorriso dela. O som de sua voz. Os seus olhos azuis que penetraram em minha alma.

Pietronella, sua mãe, escutava-o embevecida. Lembrava-se do dia em que vira Domenico pela primeira vez no escritório de seu pai. Abraçou-o emocionada.

— Sei bem o que está sentindo, filho meu. Veja, Domenico, conosco não foi diferente. Foi apenas um olhar que nos uniu para sempre.

— Sim, minha amada, mas de que viverão eles? Marcelino insiste nesta vida junto ao mar. O serviço é eventual. Só embarca quando algum marinheiro fica doente. O ganho é pouco. Agora ele vem me dizer que vai trabalhar com o pai dela tirando leite de vaca. Plantando milho…

— Será a vida que ele escolher. Se ele for feliz assim…

Algumas semanas depois partiram os três para Verona. Ficaram em uma hospedaria não longe da Igreja de San Michelle Archangelo. Domenico pediu a Frei Lorenzo que fosse pessoalmente até a moradia dos Cailoto a fim de pedir que eles marcassem dia e hora para recebê-los e também dizer-lhes a finalidade da visita.

Na manhã seguinte, após os costumeiros serviços paroquiais, um feliz sacerdote foi cumprir sua missão. Conversou demoradamente com Luigi e Angela. Eles estavam sem saber o que dizer. Thereza nunca lhes falara sobre Marcelino. Nem suspeitavam o que se passava em sua mente. Haviam percebido a felicidade estampada em sua face, em seu olhar, em seu sorriso todas as vezes em que o jovem os visitava.

Chamaram-na para ouvir o que o vigário de San Michelle Archangelo tinha para lhe contar. Sua alegria foi algo inusitado. Sorria feliz e quase soltou um grito tal a sua surpresa.

— Meu Anjo da Guarda, Deus lhe pague! Você ouviu minhas preces, meu amigo! —Falou quase a gritar e correu a abraçar seus pais e a pedir a bênção ao pároco.

Um almoço ficou programado para o dia seguinte que era um sábado. E a correria no sítio dos Cailoto foi intensa. Abater animais para os assados. Fazer as massas e os molhos. Preparar pudins, cremes e bolos. Embora fossem poucas pessoas era necessário servi-los bem. Para os Cailoto os pais de Marcelino eram estranhos. Nada mais que a hospitalidade do povo simples de San Michelle eles queriam demonstrar. E Mamma Angela, como exímia cozinheira. não entregava a ninguém o mister de preparar as massas com o melhor trigo de sua messe.

Para o talharim, o tagliatelle e a aletria ela preparava uma mistura de trigo, gemas de ovos, um tanto de sal e uma quantidade suficiente de água para deixá-la com a textura certa. Amassava-a carinhosamente. Quando atingia o ponto colocava-a sobre a grande mesa da cozinha e com o auxílio de um roliço e comprido pedaço de madeira branca, bem polida, aos poucos dela fazia uma grande toalha que toda a mesa cobria. Quanto mais fina esta toalha de massa amarelada, mais saboroso o resultado de sua obra. Depois disso, cortava pedaços dela que enrolava como se fossem pequenas peças de pano. Com um fino e afiadíssimo facão talhava-a em longas fitas ou tiras com a largura desejada. Para fazer a aletria, que era a massa ideal para as sopas, cortava-a em finíssimos fios. Pareciam dedos de uma artista a moldar sua obra em trigo e ovos.

O nhoque de Mamma Angela tinha um toque mágico. As batatas eram colhidas ainda no sereno da madrugada. Não podiam ter um ponto preto sequer. Depois de cozidas apenas em água eram suavemente amassadas. Acrescentava o trigo aos poucos. Era neste ponto que se escondia o segredo. Farinha apenas o suficiente para dar liga. Nem mais. Nem menos. Apenas gemas de ovos. Mamma Angela dizia que as claras deixam as massas duras e depois na hora do cozimento espumas cobririam as panelas. O necessário sal da vida no ponto certo. Por algum tempo a bola cremosa era revolvida sobre a mesa. Ao sentir, sob seus dedos a maciez desejada pegava alguns pedaços e pela mesa espalhavam-se longos rolinhos que caprichosamente ela moldava com suas mágicas mãos. Era a hora em que a família toda colaborava para cortá-los em pequenos cilindros. Estes pequenos cilindros jamais foram assim para a panela. Era necessário serem moldados em forma de conchinhas. Mas não era apenas uma lisa conchinha. Seus nhoques tinham arte. Passava cada naco na parte côncava de um ralador de queijo ou instrumento equivalente. O resultado era digno de uma mostra de arte. Cilindros que se transformavam em artísticas conchas com seu diversificado alto relevo a depender do formato côncavo do utensílio usado.

Outra especialidade da região que Mamma Angela era exímia em preparar era o imprescindível ravióli, a massa mais solicitada. Preparada apenas em dias muito especiais, pois requeria um tempo de preparo mais longo e mais acurado.

Além dos ingredientes usados nas demais massas ela ainda acrescentava azeite de oliva. A massa, depois de preparada e sovada ficava em um recipiente a aguardar o recheio. Poderiam ser de vários tipos, mas o mais requisitado na região do Vêneto era o de galinha.

Para isso a ave era abatida com grande antecedência. Seus pedaços eram colocados para cozinhar com todos os temperos tradicionais em fogo muito lento. Com a panela o mais distante da boca de fogo. Para um lento e suave cozimento.

Depois acrescentava os demais ingredientes. A cebola, picadinha em tão suaves flocos que mais pareciam neve a cair dentro de uma panela previamente aquecida no mais dourado e puro azeite que eles mesmo fabricavam com os frutos de seus olivares. O alho era moído pacientemente em um almofariz até que se formasse uma homogênea massa que Mamma Angela deixava dourar sobre generosos pedaços de fresca manteiga.

Quando a galinha se encontrava no ponto desejado aguardava um pouco para que esfriasse e a seguir, cautelosamente, com olhos atentos retirava roda a pele e removia a tenra carne de seus ossos.

Em uma pequena máquina de peneira fina, própria para moer o pão torrado com o qual preparava sua farinha de rosca, a filha Thereza, sempre atenta a todos os detalhes, moía a já temperada e cozida carne. Acrescentava uma porção que queijo parmesão ralado e gemas de ovos. Colocava tudo em uma grande frigideira até formar uma fina massa homogênea. Às vezes precisava acrescentar mais um pouco dos tradicionais temperos.

Com o auxílio do que ela carinhosamente chamava de pau de macarrão estendia a adrede preparada massa sobre a mesa. Com uma invejável agilidade espalhava sobre ela homogêneos montículos do recheio em uma correta linha horizontal. Revirava-a e cobria o recheio. Com uma carretilha fazia pequenas peças de contornos em forma de meia lua e retas nas bases. O cozimento era rápido, pois a massa era sempre exageradamente fina.

Em constrito esmero preparava os molhos que acompanhavam estas massas. Escolhia os mais rutilantes tomates de sua bem cultivada horta. Depilava-os após derramar sobre eles uma pequena quantidade de água fervente. Peneirava-os com a paciência de uma mamma veronesa. E aquela polpa vermelha permanecia um dia inteiro a cozer em uma panela espacial que ficava o mais distante possível da boca do fogo. Preparava a cebola para este molho da mesma forma que a preparava para temperar a carne de galinha usada no recheio do ravióli.

Eram muitos os tipos de molhos que valorizavam as massas. Ou era o de puro tomate, ou àquele purê rutilante ela acrescenta a cebola e o alho. Mas havia também um especial que todos chamavam de “Molho de Carne da Nonna”. Nada mais que a parte dos músculos do gado da qual ela retirava com o maior capricho não apenas a camada gordurosa como também toda a aponeurose. Picava-a em minúsculos cubos que não tinham mais que meio centímetro cúbico. Deitava-os sobre azeite de oliva aquecido ao máximo em uma grande panela de ferro. Esta carne não poderia ferver de maneira alguma. Um cuidado extremo para mantê-la o mais longe possível também das bocas de fogo de seu fogão a lenha. Não importava o tempo que levasse. Ela só se daria por satisfeita quando aqueles pedacinhos de carne estivessem dourados, macios e se desmanchassem na boca.

  Só então acrescentava a cebola que perolara por algum tempo em azeite quente, a massa de alho dourada em manteiga aquecida ao ponto. Depois de mexer com calma estes ingredientes ela acrescentava o puro purê de tomate. Sal e pimenta apenas ao final do processo eram colocados com extrema maestria. Salsa, cebolinha picada e manjericão eram acrescidos somente na hora em que a refeição seria servida.

Ela sempre se esmerou em preparar o molho pesto com fresquinhas folhas tenras de manjericão colhidas ao raiar do dia ainda orvalhadas pelo sereno da madrugada. Moía-as pacientemente em um almofariz de madeira, um pouco maior que aquele usado para triturar o alho. Depois de se sentir satisfeita com o seu aspecto sobre ela derramava, suavemente, fios de puro azeite. Triturava com calma os grãos de Pinoli, pois sem eles nenhum molho pesto assim poderia ser chamado. Bem ao fundo do terreno dos Cailoto havia um bosque onde vicejavam, altaneiros, as mais belas árvores do Pinus pinea, conhecido pelo povo como Pinheiro-manso. Eram colhidos sempre nos meados do outono. Armazenavam-nos em tambores que eram lacrados ainda nas regiões nevadas bem ao norte de onde os Cailoto moravam. Era difícil para eles manter pinolis ao ponto fora da época outonal. Mas Mamma Angela tinha os seus truques culinários. Deixava-os secar ao sol assim como faziam com as nozes, as amêndoas e as avelãs.

Sempre preparava um suculento e aromático recheio para as galinhas que assava em um grande forno de pedra que ficava nos fundos da casa. Ali também assavam-se o mais tenro pernil e o mais suave lombo de pequenos leitões. Para pães, bolos e cuques havia, ao lado, outro forno menor.

O aroma destas iguarias espalhava-se no ar para além da grande porteira de entrada da propriedade.

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